O SENTIDO DE UM HOMEM (PARTE I)


Todos os dias, ele tinha um ritual tão sagrado quanto os mais sacros dos ritos: espioná-la. Ela morava no prédio do outro lado rua, eram vizinhos de janela. Apesar de ela fechar as cortinas sempre que ia se trocar antes de descer para a parada em frente do apartamento para trabalhar era possível vislumbrar-lhe a silhueta. John sabia o horário exato que deveria posicionar o seu olho certeiro entre as cortinas da sua janela estrategicamente posicionada, sabia que sempre, de segunda a sexta, com exceção nas quartas – quando ela ia trabalhar em torno das 6h32min –, sabia ele que às 7h, com um atraso ocasional de cinco minutos, ela estaria lá removendo a camisola sedosa das formas macias, o sangue já corria violento pelo corpo de John, sem perceber sua respiração ficava ofegante, os sentidos primais projetavam-se além da rua, adentravam de assalto o quarto dela e de seu corpo tomavam conta: o olfato deixava-se cair chafurdado sobre o sexo da mulher, enterrava-se fundo nela e sugava com o ar seus líquidos internos; o tato confuso tentava absorver ensandecido todas as sensações do contato com a pele do corpo inteiro, subindo e descendo dos seios às nádegas, sentido as curvas e deixando-se fixar-se por uns poucos segundos no estreitamente da cintura; os olhos singrando loucos todas as partes agora dominadas, ia maximizando os demais sentidos, fechando-se rapidamente ante os avanços do paladar, que absorvia o sabor de cada célula quase fundindo-se com elas tamanha a força de seu percurso úmido do ânus à boca passando pela vagina encharcada; a audição deixava-se inundar pelos gemidos que não sabia ele ser de pavor ou prazer, e quando dava-se em si os gemidos eram dele e só dele, suando e ofegando olhava para si mesmo e via uma mão tomada de sêmen com algum líquido jorrado na cortina, limpava-se rapidamente para vê-la mais uma última vez na parada em frente de casa, naquela começo de dia, lá estava ela, sempre com um vestido leve, hoje, ela estava com o florido, John odiava aquele, porém não se importava, ele caia-lhe bem de qualquer modo, assim como os cabelos lisos e talhados com uma inclinação ascendente a partir da altura do pescoço, eles iam-se subindo com esse corte até a nuca, os fios negros perdidos quase sufocados pelas cabelos doirados em maior volume eram tal o rosto branco com falhas perdoáveis um prêmio a ser conquistado e cultivado – desse modo os pensamentos de John deixavam-se divagar, mas não com a rudeza das palavras, antes formavam-se impressões confusas que se manifestavam em sensações físicas contidas, tudo mesclava-se numa nuvem de bem-estar que logo dissipava-se para ser substituída por outra, aí ele pensava em como seria O homem para ela e como ela deveria aceitá-lo por ele ser o único que até então a amara verdadeiramente, seguia nesse auto-encanto por alguns minutos todos os dias até que o toque do celular o impingia ao trabalho.

No trabalho, entretanto, a produtividade do nosso amigo apaixonado ia-se ao mundo das fantasias junto com John e sua amante de janela e lá ficava com a cobiçada fazendo trabalhos que só no mundo dos sonhadores tem forma, achegava-se até ele e sua amante, agora ambos sentados sobre um toalha de piquenique perfeitamente desdobrada sobre a relva reluzente, um sujeito carrancudo que só sabia falar “quer um chocolate também? Quem sabe um cafezinho especial para um homem especial?” Ao que respondia John: “claro, algo especial para um homem especial e sua mulher especial; obrigado.” E sorria bobamente enquanto olhava para ela ao mesmo tempo dando-lhe a mão em palma, deixando os dedos cruzarem-se numa união afetuosa e recebendo em troca um sorriso morno de alegria eterna que transmutava-se num rosto barbudo com dentes amarelados pelo pior café que as repartições de escritório podem oferecer:

“John! Parece que a sua mulher especial anda fazendo você bem feliz! Hahaha!”

O barbudo apontava para uma mancha de sêmen não percebida por John antes de sair e continuava:

“E então? Qual foi o número? Aquela do última BBB? Ou será que você prefere algo mais década de 90? Quem sabe uma Tiazinha ou Feiticeira? Hahahha!”

Irrompeu o escritório quase que inteiro, ou melhor, no máximo, naquele momento, apenas aquela repartição em particular em riso tremendo que fez o nosso caro John procurar quase que convulsionado por um papel qualquer que lhe pudesse remover aquela mancha de seu estupro mental matutino e quem sabe recuperar-lhe alguma dignidade.

“Isso... I-i-i-i-isso não é o que você disse!”

“Ah, não?”

“Não!”

“Hehehe! Tanta faz – os risos diminuem e todos voltam pouco a pouco à simulação de trabalho habitual – tanto faz, John, o chefe precisa falar com você hoje de qualquer modo, e eu, como seu supervisor, precisava dar o aviso, considere-se avisado e, da próxima vez, limpe melhor as calças depois bater uma pra sua revista.”

Os risos que se tinham retirado voltaram furiosos outra vez enquanto John terminava a limpeza definitiva da sua vergonha matinal. Ainda meio atordoado e sem poder encontrar a lixeira, deixou por ali mesmo, em cima da mesa como pôde, a folha manchada de sêmen e foi ter com o chefe, coisa que até então havia feito somente umas duas vezes em quatro anos de escritório: uma, no processo de seleção; outra, para justificar uma falta quando a mãe morreu de câncer no hospital público da cidade. Bateu timidamente na porta e não foi sequer ouvido, o chefe, poderia chamá-lo de Silveira ou de outro nome estereotipado qualquer, mas seja qual for o chefe, a ascensão deles não será muito diferente do que nos ensina a Lei de Parkinson, de sorte que vou chamá-lo mesmo de Silveira, apesar de ele não mais ser personagem importante após esta cena que muito nos ensinará sobre a personalidade do nosso amigo John; estava ali o Silveira, afinal, com a careca dos seus cinquenta anos já bem evoluída e flanqueada pelos últimos tufos de cabelo apontada para a porta, o brilho coroando décadas de trabalho na mesma empresa serviam como um estímulo aos mais dedicados e como repúdio aos menos. John bateu novamente, agora com mais força. Um olhar rápido que fez franzir o cenho do Silveira seguido de um chamado com a mão enquanto ele voltava à tarefa mecânica de revisar a contabilidade da semana. Jonh entrou e ficou parado ao lado da cadeira de espaldar alto, porém inferior ao do Silveira, este, apontando com certa impaciência a cadeira, pedia para o subalterno sentar-se, Jonh assentiu com certa moleza de corpo que o fez ter um cuidado sobrenatural ao manobrar a cadeira, ao sentar-se nem o peso todo permitiu que ela recebesse, atendendo aos comandos de “fique à vontade” do Silveira, ele foi deixando o peso tomar lugar, ao que a cadeira só respondeu com um quase cômico rangido que gerou todo o desconforto que John esperava evitar, mesmo que o som tenha durado não mais que alguns segundos, pareceu a ambos que nada poderia ser tratado até que ele cessasse por completo, por fim, o Silveira, pigarreando, começou:

“Então, Jon...”

Erguendo timidamente o dedo e avançando com temor: “John.”

Após aquiescer com a cabeça, continuou: “John. Pois bem, John, andamos observando seus dados de produtividade e....”

Avançando um pouco mais que antes e desta vez com a mão espalmada num sinal de pare: “eu posso explicar, senhor Silvei...”

Com a mão aberta e firme, fazendo com que o outro recue momentaneamente, antes com ambos os cotovelos fincados sobre a mesa, agora, o Silveira recua, abre um pouco as pernas, deixa um cotovela solto num braço da cadeira, o outro apoiado com a mão suspensa e gesticulando espaçosamente:

“John, sua produtividade está abaixo da nossa política interna, além disso, devo ser franco: você tem problemas de relacionamento com os demais colaboradores...”

Os mesmo gestos repetem-se, o Silveira retoma o discurso: “O fato é, John: agradecemos sua colaboração pra nossa empresa, mas, infelizmente, teremos que encerrar nosso contrato.”

John deixou o pescoço levar a cabeça para todas as direções da sala, com uma das mãos coçava-se freneticamente por breve tempo e então deixava a mão cair sobre o colo, os olhos arregalados, pouco a pouco foi retomando a razão, levantou-se, olhou para o Silveira e abriu a porta, o chefe interrompeu-o:

“E, só mais uma coisa, Jon, o seu último relatório, poderia deixar ele aqui antes de ir?”

Sem se virar: “claro.”

Cruzou ainda com o barbudo pelo corredor “boas notícias, John?” que seguiu rindo com outros que estavam ali matando trabalho enviando um pouco de café pra dentro do estômago.

John procurou pelo papel com uma tranquildiade maior do que estava habituado, mas tão logo começou a pensar nas dívidas do mês, na dificuldade em encontrar outro emprego, nos quatro anos que tinha investido naquele, nos quase trinta anos que lhe atingiam as carnes, começou a suar, a tremer, abriu um botão da camisa, se não encontrasse aquele documento, a notícia poderia espalhar-se, ele poderia ser taxado como uma incompetente completo, isso poderia arruiná-lo, talvez, tivesse que mudar de bairro e pior, afastar-se dela, como poderia aproximar-se dela sem qualquer condição financeira? Tinha que encontrar aquele papel, tinha certeza que o trabalho havia sido bem feito, quem sabe eles poderiam reconsiderar a demissão? Nunca se sabe. Por cima do computador, entre outras folhas encontrou a que procurava, um tanto abarrotada, mas legível, todo o relatório do mês, com um média maior do que as dos últimos e por uma boa razão: pretendia abordá-la finalmente, pretendia convidá-la para sair e queria levá-la a um lugar caro, de classe, o que necessitava mais dinheiro, John estava disposto a trabalhar duro para dar o que ela merecia, por isso o esforço, depois dos primeiros meses de queda, estava em alta cada vez maior. Seria sua salvação, ser demitido era tudo o que ele não precisava agora. Um tanto estabanado, foi-se, mais confiante, à sala do Silveira, bateu na porta com mais força e com um sorriso metade satisfação metade forçado entregou em mãos o documento e com uma segurança incomum proferiu, apesar dos tropeços:

“Espero que o senhor analise o meu trabalho do mês e perceba que... que os meus últimos resultados... foram apenas pontuais, este mês, a minha produtividade, o senhor verá, foi, foi muito maior que toda a minha média e até até mesmo a dos meus colegas.”

“Vou ver sim, Jon.”

“É John, senhor.”

“Sim, sim, Jon, pode ir agora, entraremos em contato.”

Dias depois, John recebia a notícia: seria demitido por justa causa. O motivo: baixa produtividade com o agravante de ter entregado um relatório com sêmen ao chefe, a empresa esclarecia que dadas as circunstâncias e a afronta, John deveria sentir-se feliz por não ser processado e ter que pagar uma indenização para o Silveira. Deixou o pedaço de papel cair das mãos e com o corpo fez o mesmo mas em relação a si mesmo: já não desabou de vez porque a cadeira o segurou. Os olhos fizeram-se lentamente em líquido, o rosto tentou retê-los, torná-los duros novamente, no entanto, parecia que quanto mais se esforçava para mantê-los secos, mais eles cismavam em molhar-se, o rosto contorceu-se em horrível careta, as sobrancelhas aproximaram-se e inclinaram-se, mas em vez de raiva só serviram para expulsar as lágrimas inutilmente represadas. As costas arredondaram-se sobre o corpo, as mãos avançaram para refrear o fluxo de sofrimento, e John deixou-se lentamente escorregar-se da cadeira para fazer do tampo dela o receptáculo do seu choro agora convulsionado. Já encharcado pelo fracasso, permitiu-se, enfim, fazer do chão o local do seu pranto, dobrado em si mesmo e deixando-se ser banhado pelos olhos e pelo nariz, no piso permaneceu até que o sol inicia-se seu trajeto insensível aos sofrimentos humanos rumo a outras paragens terrestres, onde, certamente, outros iguais a John estariam também derramando suas lamúrias solitárias sobre insensíveis objetos. Mas como que removido de um encanto, John sentiu-se pouco a pouco leve, apoiando-se na cadeira e assaltado por um ou outro espasmo que em lugar de sofrimento traziam ânimo, levantou-se. A mente em um átimo lembrou-se: ela estaria lá, agora, do outro lado da janela, toda dele em um deleite solitário que haveria um dia de fazer-se completo e verdadeiro.

Por entre as cortinas, como era-lhe de praxe, enfiou os dedos, agora um tanto trêmulo, e viu na outra janela não a mulher cobiçada, era um brutamontes moreno que parecia estar puxando algo, os músculos dos braços retesadas denunciavam o peso da carga, a diferença de porte entre John e aquele homem asqueroso, pensava ele, na certa era o motivo do porque ela estar com ele e não com John, olhou os próprios braços com vergonha, amaciou e puxou os bíceps, possesso pela constatação da própria fraqueza, rosnou com os dentes cerrados: “vagabunda”. Com o rosto rasgado por rugas de cólera, voltou a observar o apartamento da vizinha. Um alívio primaveril de ex-virgem de cinco minutos fê-lo deixar o ar escapar comprido e aliviado: não era aquele sujeito um rival vil, era somente o ajudante de mudança do velho barrigudo que agora estava parlando com ela e recebendo de suas mãos delicadas um cheque.

“Não!” – fugiu-lhe da garganta – “Ela não pode fazer isso comigo! Ela não pode se mudar!”

Mas como John poderia impedi-la. Tudo já estava pronto, a mudança já estava no fim, ela talvez já tivesse pago o aluguel do apartamento ou casa para onde iria. Quem sabe, ela poderia estar mesmo indo embora da cidade! Seria o fim para John, o esfacelamento de todo um sonho, não só sonhos, objetivos concretos que se formavam a cada dia investido a observá-la. Algo deveria ser feito, e agora, ele deveria tomar uma atitude, não ser mais um homem passivo fadado a ser enterrado ao lado de outros homens fracos e patéticos que se recusaram a tomar controle de suas vidas, que aceitaram viver vidas medíocres com mulheres problemáticas, que se submeteram às ordens de outro homem, sendo passivos a eles durante décadas enquanto viam as oportunidades escorrerem para o ralo. Uma íntima força de vontade expandiu-se dentro de John, ele agora sentia que poderia falar com ela e convencê-la a ficar, mas: poderia mesmo tê-la agora. Poderia ter qualquer coisa do mundo, tudo estava ao seu alcance.

Sem pensar, desceu as escadarias do prédio sem elevador, atravessou a rua sem se importar com os carros e seus motoristas estressados, aproveitou-se da passagem aberta que uma senhora com sacolas de compra lhe dera na entrada do prédio e quando se viu frente à porta dele, tocou a campainha ser exitar. Nunca antes tinha sentido aquela sensação, não era como das desastradas vezes em que havia tentado aproximar-se das mulheres só para ser humilhado, não se sentiu ansioso e nem qualquer pensando de sabotagem o afligia. Sabia exatamente o que deveria fazer, era como se um bloqueio de décadas houvesse sido removido para deixar fluir todo o conhecimento ancestral da corte para suas ações.

Quando ela surge com seu curto cabelo doirado, a leveza característica, a pele cobiçada, os lábios bem formados, John não tem dúvidas do que fazer: olha-a diretamente . Os lábios dela afastam-se levemente e seus olhos alternam-se em visar os olhos e os lábios de John. Sem esforço, enleiam-se num amplexo fogoso enquanto suas bocas friccionam-se num ósculo salivoso e apaixonado. Por minutos ficam ambos entregues às delícias de Eros até que ela diz:

- Eu sempre soube de você, esperava ansiosamente que viesse até mim.

- Eu te amo!

- Eu também te amo, John!

Então o som de um caminhão sendo ligado e a voz dela remove-o do torpor, que em vez de abraços e beijos só gerara uma linha de saliva pendendo da boca entreaberta do sonhador.

- Eu vou na frente, vocês me seguem.

- Sim, senhora!

O motorista e o ajudante ainda se deram o prazer de ficar um tempo parados atrás do caminhão para espiar o balançar das ancas dela enquanto se dirigia ao carro.

- Porcos imundos!

A batida da porta do carro dela fê-lo despertar da raiva fugida da arcada semi-fechada de ciúmes e raiva. Não poderia deixá-la partir dessa forma, precisava saber para onde estava indo. Teria que segui-la, não tinha outro jeito. Mas como? Todo o dinheiro do mês estava contato e também nem carro tinha. John pensou em pegar um ônibus, o primeiro que aparecesse. Com alguma sorte, ele poderia ir na mesma direção que ela, porém, logo abandonou a ideia: sorte não era o tipo de coisa que costumava ser de alguma serventia para ele. A única opção seria um táxi, mesmo que a renda do mês fosse toda comprometida. Com a resolução tomada, pôs-se a vasculhar as redondezas da rua em busca de algum. Lá estava: parado entre os carros congestionados. Teria que ser ele. Desceu as escadas com ainda mais ânsia que a fantasia passada, precipitou-se entre os carros ao mesmo tempo em que a observava com o canto dos olhos. Ziguezaguiou por entre os automóveis ignorando completamente os xingamentos e buzinaços dos motoristas até finalmente chegar ao seu objetivo. Entrou no carro ao mesmo tempo que uma velhinha.

- Dá o fora, mano, a senhora chegou antes.

- Você não entende, eu preciso...

- Não me interessa o que você precisa, ela chegou primeiro.

- É! Esses jovens de hoje!

- Mas...

- Mas nada, maluco, dá o fora ou quebro suas fuças!

- É! Seu mal educado! Vai roubar o lugar de uma senhora? Quer que eu chame a polícia, é?

- Não, eu...

- Dá o fora!

- Eu pago o dobro pela corrida!

- Minha senhora, minha cota pras velhos acabou por hoje, tenha a bondade de se retirar.

- O quê? Seu mal criado!

- Dá o fora, minha senhora!

- Eu vou...

- É! É! Chama ar a policia, eu sei. Então vá! Só dá o fora do meu táxi!

- Seu!

E saiu resmungando.

- Que vai ser, maluco?

- Siga aquela carro!

- Você é algum tipo de tarado?

- Quer ganhar o dobro pela corrida ou não?

- Tanto faz. Se você quer pagar, problema seu, melhor nem saber do que se trata. Bora! Porra de trânsito...

E resmungou também. Do outro lado da rua, a velha ia reclamando com as pessoas que esperavam bovinamente o ônibus. O trânsito seguiu, e pelo retrovisor, o taxista ainda pôde ver o dedo médio da boa senhora apontado para ele com todo o vigor daquelas noventa e sete anos mais ou menos bem vividos – não pôde deixar de retribuir o gesto. No banco de atrás, John coçava o queixo com impaciência por um breve segundo para em seguida tamborilar os dedos rapidamente no apoio para cotovelo da porta enquanto a cabeça se virava para os lados como que procurando alguma coisa que estava perdida, vez ou outra mordia os lábios e apertava os dentes uns contra os outros, também não deixou de alertar o taxista sobre a importância daquele momento.

- Eu sei! Eu sei! Fica frio, não vou perder o carro de vista. Relaxa aí, maluco!

John colou-se por todo trajeto depois disso. No entanto, mais pela forma ríspida como a mensagem foi dita que pela suposta segurança que ela deveria transmitir.

- Tamo lá. Quarenta.

- Mas o taxímetro diz dez, então eu pago vinte.

- Sem chance, quarenta ou você vai sair desse táxi com o olho roxo, maluco. Fez eu perder a corrida com a velhota pra me fazer dá a volta na quadra, tão paga porque aquela velha ia querer ir bem mais longe que isso.

Contrariado, largou nota de cinquenta por cima do câmbio e saiu apressado do carro, mas ainda em tempo de ouvir os resmungos do taxista.

- Filho da puta maníaco! Não joga a grana assim não!

Ao aproximar-se dela, deixou os passos ficarem mais lentos e tentou simular alguma tranquilidade. Com um sorriso cerrado, desses que a gente vê sendo esboçados por colegas de trabalho e vizinhos. Ela deixou escapar um “oi” para o transeunte que a observava exitosamente. John, um tanto suado pela situação de nervosismo anterior, sentiu o corpo esquentar-se como se estivesse com febre, gaguejando, deixou um “oi” tímida e fraco fugir da garganta enquanto baixava a cabeça, encolhia-se e acelerava o passo. Quando teve a chance, dobrou uma esquina e encostou-se numa árvore.

- Burro! Burro! O que foi aquilo.

Aquilo havia sido o máximo que ele jamais tinha se aproximado dela. Nunca, em situação alguma, ela tinha falado para ele qualquer palavra que fosse. Em duas situações, uma no shopping e outra numa sorveteria, tinha-se dado o direito de aproximar-se dela, sentar perto, numa mesa próxima da praça de alimentação, mas só. Ficara tão paralisado só em pensar que estava respirando aquele mesmo ar que ela respirava que não podia nem ao mesmo respirar normalmente. Ali, agora, o mesmo efeito, a mesma paralisia, o nervosismo debilitante que sempre o atormentava toda vez que tentava conversar com uma mulher. Mesmo com prostitutas de internet acontecia aquilo com John. Contudo, não importava mais, agora ele sabia onde ela estava morando. Só o que teria que fazer era mudar-se para o prédio da frente, para um apartamento com uma janela adequadamente posicionada.

As soluções simples assaltavam a mente de John, ignorava ele todos os problemas, a demissão, o orçamento limitante, a formação deficiente que o deixaria fora do mercado do trabalho ou fadado a receber bem menos que o necessário para os seus planos grandiosos, nada disso o atormentava de pronto até chegar em casa e constatar a situação miserável em que vivia: as roupas, em vez de lavá-las, preferia deixar ao sol, o que fazia parte do cheiro de suor ir embora, mas nunca em definitivo; a cozinha estava sempre abarrotada de pratos sujos, alguns copos aqui e ali, latas vazias de refrigerante e outros alimentos insalubres: bolachas industrializadas; pizzas congeladas; frituras; etc. As baratas ali reinavam incontestes. Todo o resto do apartamento era igualmente abandonado. O banheiro, nem mesmo ele o suportava mais, o ralo do chuveiro ia-se entupido fazia meses, mas em vez de resolver o problema, limitava-se a fechar o registro para se ensaboar quando a água superava a limitada capacidade de escoamento do cano entupido de fios de cabelo, sujeira, fezes, sêmen e toda sorte de dejetos que desprenderam das mais de dez dúzias de seres humanos que já haviam morado naquele apartamento suburbano a esquecido mesmo pelo próprio dono, menos, claro, nos dias de cobrança, que agora batia a porta.

- O aluguel.

- O senhor não poderia me dar alguns dias?

- Alguns dias? Claro, claro, jovem.

- Oh! Obrigado!

- Com juros de mora de dez por cento ao dia, posso, sim, dar alguns dias, jovem. Volto na semana que vem e quero o dinheiro com juros. Tenha um bom-dia, Jon.

- É John!

Já estava de costas descendo as escadas com um vigor incomum para um homem que aparentava tanta velhice. John fechou a porta e ficou com as mãos apoiadas nela por alguns minutos, olhou para baixo e viu duas gotas tímidas pingaram sobre o chão; olhos, em pouco, encheram-se mais uma vez de água e o corpo deixou escorrer novamente. Socou o chão quando a ele já estava fundido e ali permaneceu uma vez mais remoendo seu fracasso.

- Qual o problema comigo!

Repetiu e repetiu como que esperando uma resposta divina que o tornaria aceitável para todas as pessoas que só sabiam demonstrar depresso por ele. Às vezes, socava a chão num ato de violência reprimida que foi sendo apaziguada pela dor crescente no punho, até que finalmente cessou toda a lamúria para tomar o seu lugar a vergonha por não ser o senhor de si mesmo, nem dos sentimentos, nem da vida social, nem da profissional, nem mesmo da financeira, conseguiu não só ser um fardo para os ouros, como para si mesmo, e um farto bruto e fedorento, descartável e que seria esquecido assim que morresse. Ao passo que ia sua vida, pensava John, não haveria de ser diferente dos milhares de indigentes que abundavam as gavetas dos necrotérios, seria mais dos milhões de esquecidos pela humanidade, o lixo social sem voz nem presença, o tipo de pessoa de quem nada se espera além de decepções, se é que poderia ao menos ser considerado uma pessoal, não era, de longe, perto de uma, e como poderia sê-lo? A esses pensamentos de auto-mutilação, John sempre acrescentava algum fio de esperança, repetia como deixaria de ser um tolo, de querer agradar quem não o respeitava, de como iria fazer fortuna com uma ideia genial, fazia então listas de objetivos que dali alguns dias não passavam de sonhos esquecidos em pedaços de papel e também não conseguia livrar-se dos fardos que o atrasavam, dos amigos pouco ou nada produtivos, em sua maioria adolescentes, que consumiam seu tempo com tolices e futilidades, nem melhorava no trabalho ou conseguia qualquer capital extra. O padrão parecia perene. Mas agora, agora algo diferente o impulsionava, manifestava-se uma energia nova dentro de John, uma vontade ímpar que o impelia a novos movimentos, ela seria o foco da melhora, mas não seria ela somente o tipo de pessoa que ele tanto ansiava agradar e que só lhe causaria mais tristezas? John não via a situação assim e nem poderia porque estava envolvido emocionalmente de modo irreversível, só a destruição de si mesmo e o total esfacelamento da sua mente poderiam despertar o resto da tragédia que John estava disposto a fazer a si mesmo, e ele seguiria guiado por esse impulso sem que ninguém pudesse impedi-lo.

Determinou a si mesmo que iria superar o medo que tinha dela, que iria conquistá-la, do que adiantaria ir atrás de um novo emprego agora ou fazer novos amigos ou seja o que for sem tê-la antes? Deveria demonstrar agora toda a atitude reprimida por anos de ideias erradas, só assim poderia conquistar não só ela, mas todos os objetivos da sua vida. Assim, no dia seguinte, juntou o pouco dinheiro que tinha, reservou duas mesas num dos melhores restaurantes da cidade, foi ao alfaiate, comprou novas roupas, um par de sapatos, flores. Alugou um carro com motorista particular. Ela não teria como recusar um encontro quando ele batesse na sua porta e declarasse todo o amor que sentia por ela – pensou John. Seria como nos filmes: desde criança sempre via suas primas abismadas por aquelas cenas românticas espontâneas, ansiosas por um dia serem agraciadas com uma demonstração de amor sincero. Não pensava John, por outro lado, que aquela reação de adolescentes era nada mais que uma catarse suscitada pelo acumulação de sentimentos outros que se escalonavam num miríade de desejos ocultos e paixões forjadas que eram trabalhados pelos autores daquelas historietas até o ápice duma emoção virtual que jamais poderia ser sensibilizada por roupas e sapatos novos, um motorista particular, flores e uma declaração sincera de amor. Não era o que John sentia por ela o que importava, e sim, o que ela sentia por John. Mas como todo apaixonado, pensava ele seu amor bastar, achava que oferecendo-lhe o mundo, o seu amor e promessas de felicidade tudo estaria acabado, fantasiava com veemência que ele era o bastante para ambos e que ela, ao ver toda o respeito e paixão e amor dele iria ser iluminada por uma luz de entendimento que não poderia dizer senão: ame-o também, pois nunca houve alguém que a amou tanto. No entanto, a realidade costuma ser diferente do que pensamos, e fico cá bem aborrecido em ter que descrever o que acontecerá a John e seu sonho infantil, todavia, tenho de fazê-lo, então que seja rápido, como de fato foi, para que a dor seja mitigada.

Vestido a rigor. Com as flores na mão em frente à porta dela. O carro negro com o motorista particular aguardando. A mesa reservada. Os sapatos brilhando. O nervosismo sob controle, mesmo que à base de calmantes. Toca a campainha. Toca novamente. Passos. Deveria ter tomado mais calmantes. Ela abre a porta.

- Sim?

- Ãh...

- Sim? Eu conheço você?

- Bem...

- …

- Eu preciso falar algo. Eu... Que se dane... Eu te amo! Sempre te amei! Sempre quis falar com você, mas nunca tive coragem. Agora, agora eu tenho! Eu vim aqui hoje pra...

Bateu a porta na cara. Ouviu-se vozes femininas rindo no interior da casa. Os olhos arregalados, paralisados. As flores no chão. O motorista impaciente.


- Ei! Onde você vai? Ei! Como fica o serviço? Ei! Vou dar o fora! Ei!

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