DO POR QUÊ DE EU NÃO TER COMIDO AQUELA LOIRA E TER APRECIADO UM SONHO COM A MINHA PRIMEIRA NAMORADA



Duas semanas isolado, só conversando aqui e ali com o meu colega de casa, um tipo direitista defensor da lei e da ordem estabelecidas. Numa discussão qualquer, após uma noite de lua cheia, até ofensas explodiram enquanto eu entornava endoidecido um vinho que roubara da minha carteira certa quantia indevida. No fim, percebi que não eram as ideias cuspidas e sim o ato de discutir que me causava prazer, contudo, não precisei de muito pensar para concluir que tal vontade era tão somente uma explosão de frustração, um eco dos relacionamentos estraçalhados que ainda espalhavam fragmentos pelo espaço temporal da minha “nova vida”.

Concordei com tudo o mais que me fora dito, dei-lhe umas palmadinhas nas costas e segui inicialmente ressentido com a noite. Não lhe dei as mãos assim, logo no primeiro encontro; fiz-me complicado, sisudo, uma perfeita dama de boate esperando um copo, que não veio sozinho, mas trazido por uma mãozinha branca e trêmula, então me reconciliei com ela.

Cumprimentei a dona dos digitozinhos e retornei, agora acompanhado e por caminho diverso, até uma festa que tocava uma música levada por um grave rechonchudo e interrompido harmoniosamente por um agudo bem encaixado, ambos andando juntos com certa batida cadenciada e quebrada por curtas sequências frenéticas de primitivismo inspirado.

Na gaita de boca, um negro de rosto chupado soprava a harmônica enquanto modulava o som com afagos firmes e dóceis; o baterista ia movendo dum lado ao outro a cabeça e os membros, ambos seguindo o som impresso numa partitura mental que ele lia com os sentimentos; no violoncelo, tangia as cordas com destreza um músico de costas para o público, completamente mergulhado no turbilhão sonoro que se ia moldando da combinação das três artes.

Eu não conhecia ninguém naquele lugar, então me pareceu conveniente perguntar pelo menos o motivo daquela festa: "venda de cerveja caseira". Disse-me uma guria esquálida depois de eu perceber que a mãozinha meiga havia-se retirado para algum lugar arcano com a cerveja que eu já considerava filha minha. Contudo, não me dignei nem mesmo a olhar ao redor, continuei trocando saliva com a magrela. Estudava alguma coisa, era de algum lugar, chama-se algo... E eu ali sorrindo, só concordando e sendo agradável, demonstrando interesse por isso e depois por aquilo, falando brevemente daquele outro.

Uma conversa tão vazia quanto o meu estômago sedento de álcool. Até que...

- Nunca tomou?

- Nunca tomei.

- Sério?

- Sério.

- Nunca mesmo?

- Nunca mesmo.

- Então prova!

Bebi, e enquanto bebia, pensei: “a repetição é o cerne de todo diálogo”. E durante o pensar, falei:

- Nossa! Muito bom!

- É bom, né?

- É bom.

- Agora você não vai querer parar de beber!

- Agora eu não vou parar mesmo!

Virei as costas e fui embora para dentro da garagem ainda inundada de jazz. Encontrei novamente aquela mão, e entre os seus dedos, o copo de cerveja aguada de antes. Sorri e, pela primeira vez naquela noite, decidi olhar nos olhos delas: uma já me conquistara há tempos, levando-me com carinho pelas ruas, apesar da minha queixa inicial, e compreendendo as minhas fraquezas de espírito; a outra não parecia querer conquistar, mas implorava por ser conquistada.

Ela estava ali parada, não num lugar tão arcano, e sim na fila do banheiro. Ostentava o olhar vago, remexia-se sobre os próprios passos, às vezes, vislumbrava algum ponto fixo no chão ou olhava sem interesse as horas no celular. Sem mais alternativas, acabava por bater freneticamente o pé direito em um ritmo destoante com a música ambiente, porém harmônico com a situação: um conjunto de retos e bexigas inchados de bosta e mijo. Finalmente havia chegado a vez dela, esperei que limpasse as vísceras para não sobrar desculpas na hora do anal e disse.

- Oi!

- O que é proteína?

- Você não sabe?

- Eu sei, quero saber se você sabe

- É uma macromolécula formada por aminoácidos, encontrada em abundância em fontes de origem animal, além de ser o principal componente constituinte dos miócitos. Os olhos arregalados dela fizeram-me imaginar uma calcinha molhada, porém não tenho certeza se foi exatamente isso o que aconteceu. Ela só desandou a fazer uma penca de perguntas que me lembraram dum questionário do IBGE.

- Você é do IBGE? Quer minha carteira de identidade também?

Mais além na noite, estávamos sentados lado a lado num sofá amarelado. Eu ensaiava algumas aproximações mais ousadas enquanto falava algo divertido e espirituoso, assim, minha mão que antes tocava de leve o ombro dela, já estava pousando por alguns segundos sobre a coxa exposta pelo vestido curto, meus comandos de aproximação, subcomunicados com suavidade por meio de uma mão espalmada flutuando no ar a espera de outra mão, começavam a ser atendidos, os olhos negros dela buscavam-me com mais atenção e percorriam os meus contornos, até que miraram os meus lábios para em seguida fugirem tímidos. Era o momento do beijo.

Dali à cama seria questão de algumas horas... Mas e depois? O que seria? Talvez começássemos um namoro que certamente descambaria em falsas promessas ditadas pelos hormônios do momento e encerrado por alguns escritos covardes e enviados via e-mail somente para aliviar a sensação desconfortável de se parecer uma vagabunda por fingir sentimentos a um enquanto fornica com outro, contudo ainda querendo manter sob seu jugo o namorado anterior, pois dele absorve os resquícios de autoestima conseguida com remédios para depressão, ou talvez, quem sabe, uma transa casual iniciada com beijos suaves que sugassem de leve os lábios um do outro, e enquanto uma das minhas mãos acariciasse o rosto dela como se fosse o de uma ninfa de Safo, eu envolvê-la-ia num amplexo fogoso que a deitaria suave sobre o leito natural maculado por panos brancos, ou talvez, ainda, eu poderia simplesmente levar um tapa na têmpora.

- Tchau!

- ...

Em casa, sonhei com a minha primeira namorada. Ela estava na Itália e tentava conversar comigo ao telefone. De alguma forma, eu via-a numa imagem nublada duma televisão de baixa qualidade, e ali estava, ao fundo, todo o mapa do berço latino, e mesmo não compreendendo nada do que era dito - ruídos desconexos e nada mais -, senti-me bem, confortável na imensidão daquele som que começara fraco e sem ritmo, mas que agora se transformava numa melodia agradável que pouco a pouco absorvia outras melodias órfãs até combinarem-se numa harmonia que ia compondo a si mesma, formando a trama complexa de vozes que emanam sua tessitura no espaço musical que expande ao limite das artes. E ali, noutro lugar, agora, eu via o rosto dela, e isso era bom.

Acordei no sofá amarelado, e não tinha loira, e não tinha primeira namorada, e não tinha cerveja, porém ainda tinha jazz, e isso era bom, apesar dos estilhaços temporais que ainda flutuavam no espaço.

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