SAINDO DE CASA


Ele dormia assistindo televisão, mas reclamava que não conseguia dormir quando eu estava assistindo televisão. Ele reclamava das músicas que eu ouvia, eu nunca reclamava das músicas que ele ouvia, achava mais simples sair do apartamento e encontrar coisa melhor pra fazer: fumar maconha com alguns vagabundos, comprar um fermentado de assai vendido como vinho num daqueles bares fedorentos de esquina.

Um dia minha mãe fez um almoço especial, sempre foi uma velha esforçada. Não mereceu passar pela metade de tudo que passou. Ter um filho como eu, único, foi o maior golpe que pôde receber, depois dos tapas, chutes e socos que meu falecido pai deu a ela. Eu era único mesmo: gostava de me masturbar cheirando as calcinhas dela, o cheiro de vagina sempre me foi saboroso, sou um chupador de buceta nato. Voltando ao almoço...

Um dia ela fez um almoço especial. Eu dum lado, o velho d’outro. Me provocou, disse pra baixar “essa música”, reclamou com minha mãe, depois consigo mesmo, algo clássico como “esse rapaz não tem jeito”. “Repete”, falei. Começamos a discutir. Impropérios cruzando a cozinha simples e mal decorada, minha velha no meio de tudo. O outro pega uma faca, soco o braço dele, mama chora e pede calma. Passa mal, tem pressão alta.

Junto meus trapos e saio daquele inferno. O desgraçado gritando nas minhas costas: “você não presta, olha o que fez com sua mãe! Ela tá passando mal!” Etc... Só mostro aquele dedo do meio, bem ereto. Como o pênis daquele broxa nunca será. Minha mãe tinha um amante e eu gostava da coisa. O trouxa lá aparando ela e a velha dando pra outro sempre que tinha chance, depois tentava me obrigar a ir à igreja.

Tinha um pouco de grana do meu último emprego. Numa fábrica suja e barulhenta. As máquinas pareciam ter sido projetadas para impedir que as sinapses cerebrais funcionassem do modo correto. Todos entravam lá e se tornavam máquinas. O sinal para o descanso de 15min tocava e aquelas máquinas-homem paravam instantaneamente, como se tivessem sido desligadas da tomada. Não aguentei um mês. Sem aviso saí da linha de produção e nunca mais voltei. Não se pode manter a sanidade num lugar daqueles. Você é corroído por dentro, sua alma fica inerte; sonhos, desejos, sua força de vontade, tudo míngua.

Agora ao menos tinha uma grana, acho que R$ 40,00. Era uma grana boa na época. Comprei uma passagem para a metrópole com cheiro de mixo mais próximo e fiquei planejando o que conquistaria na minha nova vida perfeita. Sem família, sem as pessoas da cidade medíocre em que fui criado. É como reiniciar um novo jogo. É como a extrema unção: você renova, seus pecados são lavamos para a terra e ficamos até mais leves. Como pude constatar um mês depois, em uma balança de farmácia.

Já estava pelas ruas fazia um tempo. De albergue em albergue. Seguindo pelo trecho. Comendo mal, bebendo bem. Na rua há muito cachaça, logo me viciei. É como o elixir da liberdade pra gente da rua. Com a cachaça sentimos menos fome, ela também esquenta nas noites frias, quando a horda de desconhecidos que vagueiam sob sombras, de lixeira em lixeira, sofre suas maiores dores. O povo da rua morre com muita frequência por causa do frio, mas parece que os jornais estão mais preocupados em noticiar mortes horrendas e cercadas de mistérios, fazendo-as parecer coisa comum quando na verdade são coisa rara, aumentando, com isso, a paranoia do povo e cegando-o para a realidade.

Conheci na rua gente boa e gente ruim. Chega um ponto em que todos começam a não se importar com mais nada. Não que sejam malignos, não, um andarilho comum emana mais bondade que um pai de família clássico, que gasta uma parcela do que ganha no puteiro. Na rua o dinheiro só serve pra cachaça e pra comida, mais pra cachaça, porque nos albergues há bastante comida. No olhar do homem da rua vemos uma chama bem fraca e tremulante, um fio de calor que puxa o coitado pra vida, que o mantém de pé, um otimismo santo que só quem viveu na rua sabe como é. Já nos papais e nas mamães não vemos nada além do já desgastado trabalhe-compre-vote, o brilho há muito se foi.

Comigo não era assim, nem dum lado, nem d’outro. Eu só passava de um jovem rebelde querendo dar um susto na família. Eu não tinha o brilho. Sabia que tinha pra onde ir, um lar, uma família, meio torta verdade, mas já servia. Alguns dos que eu conheci mataram os pais, outros foram abandonados por causa da cachaça. Todos com uma história, uma decepção e muitas palavras sobre seus passados gloriosos que pra nada serviam agora. Ao redor do mesmo latão, sem onde pousar, só o que importa é combustível pro fogo, quer você tenha sido um deus, quer você tenha sido sempre um mendigo.

Com a noite gélida ao redor, sô o fogo e a cachaça importam. E por causa deles me envolvi num estupro: uma viciada em crack, prostituta, negra, pobre, sem ninguém, todas as qualidades para ser considerada a argamassa da pirâmide social ou nem isso. Ela veio ali no fogo e tomou um pouco do calor pra si. Amontoaram uns tantos mendigos e andarilhos ao redor. Cada qual querendo sua parte do fogo. Esbarravam um no outro e não demorou pra cair algo no chão, poderia ter caído o que fosse, até a cabeça de alguém, poucos se importariam. O silêncio que se fez gelou até o tempo: a puta derrubou a cachaça.

O dono logo saiu empurrando e resmungando. A mendigada segurando ele, somos civilizados, acredite se quiser ou não, não me importo. Seguramos o que deu, a confusão alastrou-se. Ninguém mais se lembrou de dar vida ao fogo. No meio da zorra, o coitado que tinha perdido a garrafa começou a puxar a pouca roupa da prostituta. A maioria se retirou, foram pras escadas e paredes com reentrâncias enquanto a barbárie seguia, uns mais sádicos ficaram olhando, eu na platéia.

Pensei em interferir, ajudar aquela puta magra que estava prestes a ser estuprada. Estava um tanto bêbado e até apreciei o espetáculo, não sei, não senti nada demais. Apreciei, mas não me deleitei, não é o tipo de coisa que eu iria ver no teatro. Talvez o que me manteve ali fosse uma necessidade pelo mórbido, talvez efeito colateral pela falta de TV. As pessoas normais sempre têm seus desejos insanos satisfeitos por ela, eu não tinha uma. Então olhei cada cena do ato como um canal diferente:

Canal 1, o sexo implícito: ele agarrando-a com brutalidade, ela resistindo com firmeza, seus gritos sendo assassinados por uma palma suja e calejada. Canal 2, a nudez: primeiro um seio pequeno que mexeu de modo um tanto sensual depois de rasgada a roupa, a lambida do rufião, das costelas até o queixo passando pelo seio à mostra. Foi forte e vigorosa, deixou um fio de saliva que brilhou com a pouca luz do beco mal iluminado. Quase poético, uma boa cena de fotografia. Fiquei de pau duro, tive nojo de mim mesmo. Comecei a masturbação. Canal 3, sexo explícito: ele tirou o pênis mal cuidado pra fora, a camada de esmegma deveria ter um 1cm de espessura, meteu tudo pra dentro da mulher, vi um pouco de sangue. Esmegma e buceta de puta menstruada, quem se importa? Gozei.

Depois que ele terminou se foi sem nada dizer. Olhou pr’um lado, depois pr’outro, depois pros meus olhos enquanto fechava a braguilha. Olhar inocente como o de uma criança que fez arte. Ficou um tempo ali com aqueles olhos limpos e rosto encardido. Sem mais nada se foi. A outra lá no chão, caída, chorando, arrumando a roupa rasgada. Aproximei-me. Tentei ajudá-la, foi muito ríspida, cuspiu em mim.

“Dá o fora, tarado”.

“Cala a boca!”

Dominei os pulsos dela. Resistiu pouco, estava cansada. Nessas horas não se pensa, só se age. Logo estava com o pênis imerso naquela vagina usada. Ela só lágrimas. Lambi o rosto e tudo que pude, nem pensei onde aquela outra língua nojenta andou roçando antes de mim. Só queria aquele corpo de drogada: magro, negro e feminino. Fazia meses que não transava com nada diferente da minha mão. Fica a dica: nunca aperte a mão de um mendigo, ele acabou de se masturbar ou de mixar. Também nunca aperte a mão de um político, ele acabou de receber dinheiro lavado ou de propina. Entre os dois, fique com o primeiro, são mais limpos.

Nem pude ver o cassete. A polícia chegou bem rápido. Quando vi já tinha levado uns quatro chutes no saco e uns três no cu. Normalmente eles não se importam com essas coisas, deveriam estar entediados, sem nenhum grupo de adolescentes vadios pra abordar e esbofetear. Mal dia para o meu primeiro estupro. Foram me chutando e batendo com os cassetetes, pra puta um deles disse:

“Dá a grana, vadia! Dá a grana e vaza!”

Ela vazou, claro. E eu fiquei ali levando bordoada. Na delegacia já deveria ter umas duas costelas quebradas, de resto era só hematoma. Fizeram a papelada e me jogaram na pior cela. “Estuprador!”. Gritou o filha da puta que me largou no meio do chiqueiro. Depois dessa fui parar no hospital com a cabeça rachada, algumas costelas partidas e com o cu sangrando AIDS. Ligaram pra minha velha. Eu devia ter ficado em casa, pensei, enquanto sangrava na cama de hospital.

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