Padre Cícero. Nome de gente boa, como se costuma dizer. Vivia os dias
a rezar, fazendo o bem pelo bem. Sua maior alegria era o sorriso dos pobres
amparados pela diocese de Santa Expedida, comandada pelo servo do Senhor desde
idos de mil novecentos e alguma coisa. O nobre velhinho era tão antigo, se
dizia por ai, quanto a catedral de São Cristovão – o templo mor da região.
Era só o Padre Santo, como era conhecido, iluminar o chão batido com
sua presença e a criançada começava a saltitar, os brinquedos fugiam da sacola
do senhor e iam para as mãos encardidas da molecada descalça. No outro plano a
dentadura amarelada das senhoras resplandecia da porta das casas-colméia
cedidas pelo governo. Diziam elas ser aquele homem coisa de Deus, um tipo de
anjo senil a espera do empossamento sacro pós-vida.
Tanto se falava do Padre
Cícero, tanto se tinha o homem em estima divina, que naturalmente algo
antinatural já era atribuído a sua pessoal. Dizia-se que o convento sob seu
comando, o Sacro Convento das Irmãs Expeditas, era visitado por Jesus! Não se
sabia se em pessoa ou em espírito – esse dilema serpenteava as conversas de fim
de tarde entre as comadres rechonchudas, contudo o que se ia fundo nas veias da
fofocagem eram os relatos dos encontros em
persona com o Messias.
Dizia-se em meio tom de superstição, outro de fé e mais um bocado de
maldade infantil enterrada, que findo os votos da primeira profissão do
religioso – sempre restritos às paredes do Convento – surgiam, oriundos do
paraíso celeste, luzes brancas e puras que se fundiam a nuvens douradas que
traziam em seu núcleo divino a figura de um homem esguio, mas vigoroso, do seu
rosto emanava feixes luminosos quase cegantes de paz e boa-aventurança. O filho
do Senhor, então, aproximava-se da consagrada e dizia: – agora tu és a esposa
de Cristo, bebei do meu sangue.
Depois de sorver o liquido sacro as freiras eram unânimes: lentamente
os olhos iam-se fechando e elas caiam, pouco a pouco, em pesado sono, contudo,
antes que tocassem o chão, Cristo, em sua benevolência, as segurava
delicadamente e proferia, com voz doce: – Tu és agora minha esposa,
consagrá-la-ei com meu divino espírito. Então vinha o outro dia, uma leve
enxaqueca as acometia, naturalmente nada que confrontasse a experiência de ter
estado, de ter tocado o Cordeiro, o filho de Deus, Jesus Cristo. A consagração
estava feita, assim como os relatos nebulosos e impregnados pela fé do povo.
Agora chegava à cidade a juvenil Iasmim. Menininha doce, desses tipos
que se encontra em contos de fada. Uma delicadeza de dar dor, uns lábios
docinhos cheirando a mel. Cabelos em caracóis, quase em proporção áurea. A
bichinha era de fazer chorar o mais vil dos bandidos. Só de olhar se tinha
vontade de agarrar a criaturinha e protegê-la de tudo o mais que não fosse os próprios
afagos carinhosos do sequestrador. O Padre Cícero quase que teve o primeiro AVC
da vida ao ver Iasmin e seu vestidinho esverdeado, bem apertadinho na cintura,
presente de despedida da avó babona.
– Padre? Padre?
– Hã? O quê? Ah sim! Filha! Minha filha. É um prazer recebê-la, você e
essa menininha adorável! No que este servo do Senhor pode ajudá-las?
O padre babava agora mais que a costureira daquele vestido silvestre.
De algum modo ele era recatado e safado, tudo misturado, coisa perturbadora.
– Padre Santo! Eu fiz uma promessa. Essa menina – O presbítero visou-a
com interesse – nasceu tão fraquinha, coisa de dar pena! Eu e minha mãe fizemos
uma promessa: se ganhasse força e saúde seria consagrada ao Sacro Convento das
Irmãs Expedidas quando completasse doze anos de idade.
Os olhinhos castanhos só faziam olhar o chão, naquele ressentimento de
criança que se encontra em novo território. Lentamente viajaram pela geografia
até que cruzaram com os do padre. Uma taquicardia atacou o homem. Foi amparado pela leiga. Logo melhorou, com a ajuda de Cristo, talvez.
– Tudo bem, padre?
– Tudo, não se preocupe, coisas da idade.
Riram-se com certa tensão. Exceto a menina, ela se mostrava pensativa,
mas não confusa como as outras novinhas que ali viviam. Tinha algo de diferente
nesta, algum ar de maturidade adiantada, coisa escondida que muito interessava
ao padre Cícero. O que seria?
As dependências foram apresentadas à mocinha e sua mãe. As mulheres do
Sacro Convento das Irmãs Expeditas viviam em reclusão, ali entravam ainda bem
novas e ali permaneciam até o fim das suas vidas, completamente consagradas ao
Senhor Jesus Cristo. A profissão religiosa era aceita com a idade de quinze
anos, aquelas que demonstravam especial aptidão eram consagradas no Sagrado
Altar pelo próprio filho de Deus! O padre Cícero era o responsável pela escolha
e pelo rito, o próprio Cristo falava com ele em sonho, apontando aquelas que
seriam abençoadas em pessoa e espírito.
– Padre Cícero. Espero que a minha Iasmim seja escolhida pelo nosso
Senhor! Seria uma benção!
– Não tenho dúvidas, minha querida, não tenho dúvidas que será!
Um dia depois rumava à sua vida de roça, crente que deixava a filha
querida e, até onde se sabia, inocente nas mãos do Sacro Convento, nas mãos do
Padre Santo, o escolhido de Jesus.
A garota logo se tornou o anjinho daquele casarão rústico. Todas as
freiras derretiam-se perante aqueles olhos de caramelo, a doçura da voz
projetava-se dos lábios rosadinhos como se tivessem sido compostas em partitura
sacras, cada nota delicadamente escolhida, a harmonia escravizadora. Todos, e
absolutamente todos, tornaram-se reféns daquela menina mágica. Por isso não houve surpresa quando o Padre
Cícero propôs a consagração somente três meses depois de aquela criaturinha ter
sido ali deixada pela mãe. A menininha agraciada, claro, não tinha muita noção
do que significava a tal consagração, só sabia que veria o próprio Jesus em
pessoa, que seria por ele abençoada e que deveria portar-se exemplarmente, que
deveria agradar ao Senhor dos reis.
Mas agradar é uma dessas palavras que toma os significados mais
diversos, varia em função da vida, das definições e necessidades, do
ensinamento e temperamento. Tem a ver um pouco com maturidade, mas também com
malícia. Há os agrados beatos e os agrados diabos. Aqueles que vemos ou ouvimos
e que acabamos por aprender. Todo tipo de coisa da mesma coisa. Claro que a
jovem Iasmim não sabia de nada disso, para ela a vida era agora um correr e
saltitar só. Vivia girando e traquinando e dizendo às bonecas e às plantas e
aos animais que seria consagrada pelo próprio Senhor. Até que certo dia, ao
invés de falar, pôs-se a ouvir detrás de uma porta pesada e envernizada:
– Quero tudo pronto para o dia da consagração da menina. Não se
esqueça das luzes e das nuvens. Já mandei o dinheiro, tudo na sua conta. A
roupa de Cristo está pronta... Vai ser o melhor dia da minha vida.
– Tudo certo, senhor, o produto ‘tá aqui também, sem estresse.
– Acho bom... Aquela menina é tudo que sempre sonhei; que ela agrade
ao Senhor como ele merece! Hahaha!
– ‘Que foi isso?!
Em passos de algodão a menininha travessa e faceira disparou rumo ao
pátio antes que a cabeça careca do padre Cícero varresse o corredor com um
olhar taciturno e desconfiado, como se estivesse falando sobre assuntos
proibidos. A garota pouco se importou com os detalhes, só sabia que deveria
agradar ao Senhor no dia da consagração, e já sabia como: iria agradá-lo da
mesma forma que vira a sua mãe agradando ao seu pai, ora! O pai dela era
menino, a mãe dela era menina, ela era menina, Jesus era menino! O que poderia
dar errado?
No dia esperado, proferiu o padre:
– A nossa família espiritual está hoje em festa por esta serva de
Deus, que se consagra ao serviço de Cristo e da Igreja pela primeira profissão.
Elevemos, pois, as nossas preces a Deus Pai, que lhe concedeu o dom da vocação,
dizendo com alegria...
Seguiu-se as evocações em nome da igreja, dos fiéis, de Deus e tudo o
mais que era sagrado neste e no outro mundo. A garotinha ajoelhada frente ao
Padre Cícero, com as mãozinhas juntas em prece, olhinhos fechados, toda meiga,
mais sagrada que as sagradas coisas proferidas pelo Santo Padre, o bom velhinho
responsável pelo Sacro Convento das Irmãs Expeditas.
– Atendei, Senhor, às preces do vosso povo e, por intercessão da
Virgem Maria, Mãe da Igreja, infunde
– palavra dita com vigor – o Espírito Divino sobre esta vossa serva, a quem
chamastes a seguir a Cristo pelo caminho da perfeição evangélica, e fazei que
venha confirmar estes votos temporários pela futura consagração perpétua. Por
Cristo, nosso Senhor!
O presbítero abriu o olho espião, Iasmim ali estava: ajoelhada,
inocente, esperando a vinda do Messias. Sorrindo com o canto da boca o padre
buscou com o globo ocular certa abertura onde um homem misterioso estava a
postos, pronto para trazer ao mundo humano a silhueta do Todo Poderoso. Então o
padre piscou ao comparsa – era o sinal: luzes brancas tomaram o Sagrado Altar,
a garotinha saiu do estado de prece, nada via, estava ofuscada pelo jogo luminoso,
protegeu a visão com as mãos delicadas. A intensidade luminosa perdeu força
lentamente, nuvens douradas surgiram e em meio a elas estava Ele: O Messias.
Aproximou-se com os braços abertos, a misericórdia divida emanando a
cada passo. O ser de outra dimensão, o filho do Senhor, o Salvador das Almas.
Na mão esquerda levava um cálice, deveria ser o Gral, pensou Iasmim, o
recipiente que levava o sangue imortal. Ante de bebê-lo, em sua inocência
maquinou a garotinha, deveria agradar ao Senhor da sua maneira, da maneira que
vira sua mamãe fazendo com seu papai.
Pulou em cima do Messias e enfio-se embaixo da túnica. O Cordeiro
perdeu o equilíbrio por um instante, inutilmente implorou pelo término daquela
traquinagem, mas logo se viu prostrado, segurando fortemente a cabecinha
inocente que subia e descia com velocidade, não mais resistiu, pelo contrário,
estava mais que disposto a dar aquela menininha o sorvo da vida de Cristo. E
como a juventude daquele corpinho manhoso ansiava! Seguiu cada vez mais forte,
cada vez com mais ânsia, até que o Messias, não se sabe como, perdeu as
energias divinas, sem mais forças o coração exigiu o descanso e parou.
– Hã? O que houve?
Os olhinhos castanhos contemplaram o Messias caído, a curiosidade
inocente e confusa não podia entender o acontecido. Será que ele havia gostado
tanto que dormiu? Instintivamente passou a mão na boca, descobriu uma coisa
branca e grudenta. “Parece cola Tenaz”, pensou. O cálice ainda estava ali,
esticou o bracinho e tomou um gole pesado. Antes que pudesse dirigir-se ao
filho de Deus sentiu o corpo pueril implorando por descanso, adormeceu
lindamente.
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Pranto. O Sacro Convento das Irmãs Expeditas havia perdido seu
patriarca. A diocese de Santa Expedida estava em luto. A Catedral de São
Cristovão entulhada de leigos, consagrados e demais membros do clero Romano. O
arcebispo da arquidiocese comparecera em pessoa. Mesmo no Vaticano o Papa
chorava a morte, ou melhor, a sublimação aos céus do Santo Padre. Assim havia
sido nomeado, pelas senhoras de boca miúda, o que a policia chamava de
desaparecimento do Padre Cícero.
Já dois milagres se atribuíam ao homem tão adorado. Falava-se em
beatificação. Os rumores divinos ganhavam força ante o testemunho da jovem
criança que vira tudo acontecer, Iasmim afirmava ter bebido do sangue de Cristo
até subitamente desmaiar em uma torrente de fé. Décadas depois se tornaram
santos tanta menina, quanto padre. Esta por testemunhar e pregar os milagres do
Padre Cícero, este por ter estado em comunhão direto com o filho de Deus.
Só não caiu na santidade o engenheiro do céu. A ocultação de cadáver
rendeu a ele todas as riquezas do paraíso, além da conversão de mais de uma
década de prisão por cumplicidade em pedofilia em toneladas de imagens do
Padre Cícero e da Santa Menina, novenas do Padre Cícero da Santa Menina, velas
do Padre Cícero da Santa Menina e todo tipo de bugiganga religiosa responsável
pela manutenção do bem mais preciso da humanidade: a fé.
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