O HOMEM QUE GOZAVA DINHEIRO


- Este é Pedro – uma enorme tela de projeção foi repentinamente iluminada com a figura de um homem moreno com feições envelhecidas pelo tempo e pelo trabalho árduo – Ele trabalha quarenta e quatro horas por semana, tem direito a repouso semanal remunerado, participação nos lucros da empresa, remuneração por trabalho extraordinário (o famoso cerão), adicional por atividade penosa, licença paternidade, décimo terceiro, salário mínimo, férias... Ao menos é isso o que diz, entre outros direitos, o Capítulo Dois da Constituição da República Federativa do Brasil. Acreditam nisso?

O público, em sua maioria de rostos juvenis, sussurrou consigo mesmo, contudo não se manifestou.

- Eu acredito! Acredito que o que acabei de citar é meramente um ideal, mas no nosso mundo os ideais, infelizmente, somente existem em nossas mentes... O que temos é a triste realidade do Brasil explorado, do mundo envolto no capital, do mundo que faz nosso bom Pedro trabalhar mais de doze horas por dia (ou oitenta e quatro horas por semana), que lhe rouba o dia de folga em prol do lucro, que o coloca no cabresto totalmente ignorante enquanto aos rendimentos daquilo gerado pelo seu suor, que o força a extrapolar os limites da humanidade ao consumir mais da metade do dia em tarefas insalubres, que o priva da alegria de receber de braços abertos o filho que vem ao mundo, que o despoja de dar à família o conforto de sua companhia por conta da necessidade sempre maior e maior de consumo das minorias privilegiadas. O que temos é o refinamento da escravidão travestida sob a forma de contratos de trabalho que, quando não totalmente desrespeitados, são quase que integralmente deturpados, seja pela falta de conhecimento dos trabalhadores vítimas de um sistema de educação alienador, seja pela corrupção dos sindicatos manipulados pelo espúrio capital advindo da exploração das massas inferiorizadas.

- Ninguém é obrigado a trabalhar e se os trabalhadores pouparem podem abrir seus próprios negócios... – proferiu o homem velho, careca, de camisa azul, com a chave de um carro agarrada no cinto.

- Se o nosso mundo não fosse escravo do dinheiro, esta mácula geradora de todos os conflitos da humanidade, eu bem concordaria com o senhor – o homem inclinou-se para frente, a mão segurando o queixo – Mas o nosso bom Pedro não teve escolha, pois o estado não deu escolha a ele, a sociedade não lhe deu o apoio prometido, a sociedade não lhe deu educação adequada, a sociedade não dividiu a riqueza de modo justo, a sociedade, em suma, garantiu que o processo de pobreza perene que acomete a família de Pedro fosse perpetuado, moveu recursos para que ele e todo o seu sangue se tornassem meros peões nas mãos de pessoas que somente receberam os frutos de gerações de exploradores que vieram antes deles, de pessoas cujos capitais foram formados com trabalho alheio, de pessoas que se dizem geradoras de emprego e renda, mas que não perdem a chance de demitir e fraudar e manipular estruturas sociais somente por um pouco mais de lucro. É disso que falamos aqui, desse sistema hipócrita que prega que todos podem escalar a fajuta pirâmide, mas que não garante igualdade de condições, pelo contrário, aumenta as distorções econômicas e corrompe as mentes dos mais pobres para que estes busquem a El Dourado de dólares através da máxima pútrida do “seja explorado hoje, explore amanhã”. Esse sistema de exploração do homem pelo homem deve acabar, é nosso dever eliminar essa máquina de exploração movida a dinheiro. Podemos mudar! Basta abandonarmos a ânsia pelo capital.

Palmas efusivas. A maioria dos presentes parecia ter sido fulminada por uma aura de humanidade e benevolência. Todos sentiam nas veias a química da bondade pura, a impressão era a de que falar dos problemas do mundo era o mesmo que resolver os problemas do mundo. Todos se sentiam renovados. A cartada final do palestrante, a resposta veloz ante a velha falácia, era o esperado do veterano Lucas, esquerdista de primeira grandeza.

Mas todo sentimento altruísta no homem logo se dissipa, a vontade de voltar ao mundo, com os mesmos olhos fechados de sempre, pouco a pouco tomou conta e o público dispersou-se lentamente, os que estavam mais a frente tomavam coragem para cumprimentar o arauto do novo mundo, os que estavam ao fundo foram esvaindo com pressa contida, exceto por certo careca:

- Então você pensa – aproximou-se com a mão estendida e um falso sorriso nos lábios – que o problema do mundo é o capital e não a falta dele?

- Capital? Se os bancos não o segurassem tanto a população teria o bastante para melhorar de vida. Capital, temos bastante.

- Sim, mas somente se as pessoas fizerem a proposta certa, caso contrário há motivos para o banco segurar o capital. Ora, se eu lhe propusesse um plano de negócio não rentável, você me concederia o empréstimo? Claro que não, aceitar seria o mesmo que jogar dinheiro fora!

- Pois é justamente esse o problema, amigo. Qualquer banco negaria, e não somente baseado em números, mas também em preconceitos. Imagine o seu Pedro indo a um banco pedir empréstimo, seria negado, por melhor que fosse a ideia. Agora se o plano fosse pedir cartões de crédito, ah sim! O banco não se importaria em escravizar mais um trabalhador no ciclo da escravidão monetária. É esse tipo de mundo seletivo que eu ataco: o mundo do dinheiro, não o mundo dos humanos.

Os dentes amarelados daquela careca surgiram em meio aos lábios ressequidos. A boca velha estirou-se às gargalhadas. O homem da humanidade emudeceu. Como o outro poderia estar rindo de coisas tão plausíveis? O mundo era o que era e estava errado! Tinha que mudar!

- Ah, garoto! Doces fantasias da mente juvenil – as palavras distorcidas pelo riso que se ia – Admiro sua coragem por falar o que pensa, mas ao mesmo tempo lhe acho um tolo hipócrita por menosprezar aquilo que lhe sustenta.

Emendou dois tapas fraternais nas costas do garoto, agora irado com a afronta. Retirou-se levando consigo os risos de velho lobo do sistema. O palestrante ainda pensou em lutar por sua réplica, mas fora mantido no lugar por um peso suave que lhe amaciava o ombro. A mão DELA:

- É só um reacionário, não liga.

Voz a mesma do tempo de escola, digna daquelas descrições melosas de escritores romancistas. Lucas bem gostava do mundo e das pessoas e de buscar soluções e lutar para expurgar da alma da sociedade a sombra da discórdia e do egoísmo, sim, ele bem queria isso, mas em um antro freudiano qualquer da mente também ansiava reatar, voltar para os braços DELA. A sociedade até seria um preço pequeno para tanto:

- Lucas?

- Hã?!

- Viajou, é? Tem que parar de fumar.

Ela riu alto, ele baixo, ainda assim estavam em harmonia. Não do modo certo, mas de algum modo...

- É, baita reacionário. Como essas pessoas não conseguem ver coisas tão evidentes?

- Pois é...

Timidez infantil. Ambos caíram em si mesmos por um momento. “Por que é tão estranho se dar tão bem com o ex?” Pensou ela num ar até pueril.

- Vou indo...

- Não!

- Hã?

- A gente... A gente podia... Sei lá...

- Melhor não, Lucas.

Aquela negativa com a cabeça. Tudo o que ele não queria.

- Vamos indo?

O sujeito era forte, bem vestido, tinha um carro e algum dinheiro. Um desses tipos sustentados pelo trabalho alheio, mas com dinheiro suficiente para conseguir algumas meninas “erradas”. A garota da vez era ELA;

- Certo. Até.

- Até.

Não a tinha mais. Apesar de todas as ideologias, todos os debates e discussões sobre os malefícios do capital, mesmo após tudo isso aquela garota ainda bradou na última discussão que não aguentava mais uma vida de “instabilidade e dívidas”. Por fim o relacionamento definhou e agora ali estava ela, junto com um homem tomado pelo vício do lucro, junto com a antítese daquilo que Lucas defendia, rebaixada ao rol dos hipócritas amantes do dinheiro.

Agora era só ele. Sozinho, somente com o que ela foi. Somente com uma parte limitada DELA, um recorte disforme daquelas formas, daquela mente, somente fotos inertes e sem sentimentos, sem voz. Observava-as com furor, as veias inflamadas, o sangue selvagem conquistando territórios, a mente emergindo podridão, os ideias saltando para o abismo, olhos umedecidos, pulso firme. Sentia-se disforme, vulgar. Gozou. Pênis numa mão, foto na outra. Depois chorou, pois o que tinha ali não era ela, somente uma imagem, uma mentira, um pedaço de papel fotográfico besuntado...

- Mas, o quê?!

Limpou os olhos ainda úmidos. Olhou a mão em estado completamente inverso: aquilo não era sêmen, aquilo era...

- Dinheiro? Dinhei... Dinheiro?!

Estava ali, bem, não estava ali, ao menos não o que Lucas esperava. O que ele via eram duas gordas notas de mil dólares e exatos cinquente e três cents – estes em moeda, como de costume; talvez produto dos espirros finais daquele prazer solitário. Um prazer surreal, mas bem real. Afinal, que inferno era aquilo?!

- Como eu? Como eu...

Como? É, era uma boa pergunta. Mas quem se importa? Muitos não se importariam em saber o porquê, e sim em saber como fazer novamente, mas Lucas era um sujeito diferente, ele tinha ideais e queria saber como as coisas funcionavam; coisas incomuns hoje em dia. Só havia uma maneira...

Não! Não pode ser?! ESSA COISA SAINDO DE MIM!?!? Vou ser alvo das maiores atrocidades, o que ELA vai pensar?!

Era compreensível. É da natureza dos homens pensarem nas mulheres, claro, ele só estava gozando duas notas de mil dólares e alguns cents sempre que resolvia relaxar, mas a primeira coisa que lhe fulminou foi a imagem DELA. Chorou como sempre fazia quando não suportava a situação. Sem controle do corpo procurou por algo para limpar aquelas lágrimas medíocres, quando se deu conta estava esfregando o rosto com notas de mil dólares.

- Não! Meu DEUS, o que é isso?! O que eu me tornei?!

O turbilhão. O discurso. O capitalismo. O comunismo. Os ideais. Os dólares. O mal. O conflito. A exploração. A fome. A tortura. A escravidão. A pobreza. Tudo causado por uma só coisa: dinheiro. E agora a podridão saía do corpo dele, ela era agora a causa, a mazela, mais um culpado. Como aquele porco capitalista que estava com ela, como aquele verme que certamente adoraria nadar numa pútrida piscina de dólares.

Por dias sofreu em silêncio, não atendeu ao telefone, nem à porta. Permaneceu sozinho no quarto, chorando e gozando ante as fotos DELA. Dissecando memórias perdidas na sua mente perturbada, fazendo e refazendo cenários, imaginando soluções, opções. Cogitou castrar-se, mas não suportava a ideia da dor. Pensou em suicídio, mas lhe faltou a coragem. Até que então finalmente teve a epifania que mantinha oculta sob camadas e mais camadas de ideais tão fortes e reais, mas ao mesmo tempo frágeis e irreais. Por fim formou-se o que tanto se esforçou para esconder: a ganância.

Sim. ELA era como eles. Também era uma amante do lucro, do capital, do dinheiro. Adorava a riqueza. Acaso não tinha sido a instabilidade a responsável pelo tremor que levou à terra o relacionamento deles? Não estava ela com um homem mais rico, mais forte, mais bonito? Não havia sido a miséria em que ele vivia um dos catalisadores da tristeza que ameaça consumir-lhe até o último vestígio de vida? Todos os problemas ali estavam. Todos causados por uma só coisa: a falta de dinheiro. E agora tinha em mãos, literalmente, a solução.

Lucas refletiu um pouco mais e caiu rumo ao abismo do capital. Esqueceu tudo que defendera, foi tomado pelo júbilo do dinheiro. Em pouco tempo conseguiu o que queria. Novamente a tinha, tão fácil como sacar dinheiro em um terminal eletrônico. Logo ela o viu no carro do ano, logo ela o viu de cuecas numa cama d’água dum motel de alto nível, logo se entregou ao que saía daquele pênis. Em semanas frequentavam as festas de alto nível, em meses não mais cumprimentavam os antigos amigos de esquerda, depois de um ano nem sabiam o que era esquerda. Tornaram-se aquilo que sempre quiserem ser: animais irracionais fingindo racionalidade.

- Nossa! Isso é tão bom!

- Hum?

- Essa vida, Lucas! Agora temos tudo que eu sempre quis...

- É, mas...

- Mas nada! Vem cá...

Ela subiu em cima do ex-falido. Excitou-o quase que instantaneamente. Logo os gemidos tomaram o quarto confortavelmente decorado. Ela beijou o pescoço dele lentamente, foi descendo com a língua, beijou a virilha e pouco a pouco foi em direção ao pênis. Começou a sugá-lo com prazer. Gemidos, suor, pênis na boca. Veio o gozo, lambuzou toda a boca da parceira.

- Lambuzou?! O quê!

- Eu não...

Aquilo não era esperado, deveria sair dinheiro daquele pênis, mas apenas saía o que deveria sair de qualquer outro pênis do mundo, nada de especial, somente sêmen; coisa que ela conhecia bem. Discutiram, chegaram à conclusão que era apenas um “erro”, sabe-se lá do quê. Tentaram novamente: a excitação , o prazer máximo, o gozo... Mais sêmen... Tentaram outra vez e outra vez e outra vez... Nada. Aquele pênis estava falido.

- Aonde você vai?

- Adeus, Lucas!

- Espera...

Não adiantava mais, ela estava ali por conta de um dom, por somente uma característica: aquele pênis-banco, nada mais. Lucas mergulhou na fantasia, pensou na riqueza perpétua, no desfrute eterno do prazer, enganou-se, mergulhou rumo ao suicídio social e também financeiro. Gastou tudo que gozava gozando com mais força, sempre mais e mais. Não pensou no futuro, agiu como uma criança grudada no peito materno. Pensou que a fonte jamais secaria.

Não quis ver o que sempre vira, fechou os olhos voluntariamente. Agiu como aqueles sujeitos da Caverna, aqueles que os professores ruins de Filosofia sempre fazem questão de falar, mas que pouco importa compreender. Fez como eles, apesar de não estar acorrentado. Agora padecia solitário, mais uma vez com recortes do tempo, mais uma vez com falsas lembranças, ainda mais sozinho do que jamais fora, pois agora ansiava obter novamente o fruto da sua corrupção, mas também da sua alegria e também da do Seu Pedro, que afinal conseguira aquele empréstimo com certo careca a taxas risíveis de 3,43% a.m. 

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