OLHOS DE POE


A lágrima é a materialização do sentimento, ela só não verte quente, verte livre e verdadeira, e em seu trajeto perde o calor extraído das entranhas da alma, fenece fria sobre os rostos mortos das fotos destruídas após deslizar doce pela face rasgada e contorcida pelas expressões puras do espírito, do som da vida que se exprime em soluços, pelas rugas explosivas que vem e vão, emulando a ressaca do mar que avança tão somente para recuar e tornar e investir, inútil em sua torrente arrasadora.Quem perde a habilidade de vertê-las, perde também o poder de apreciar e exprimir o sentimento verdadeiro, a humanidade desses desafortunados regride, são mais próximos de outro tipo de homem, um ser instintivo e violento, manipulador, mentiroso, uma emulação de humano que é identificada quando sua apatia tonar-se perturbadora até para si mesmo, de um modo que não consegue entender, de uma forma que lhe preenche algo que nunca esteve lá, mas que anseia por um emoção explosiva e destrutiva.

Então tudo desmorona, e somente sobram as pernas nuas, as poses artificiais, o passado construído que hiberna e soluça numa junção pitoresca de palidez e sorrisos multicoloridos, e as noites furtam dos livros a atenção, e a projeção do que poderia ter sido move-se ensandecida numa torrente aquosa e hermética de paz e alegria que buscam nos velhos papéis cibernéticos algo não procurado, algo que polula sozinho e abre a si mesmo para revelar coisa passada:

E quando teus olhos se fixam nos meus,
E teu braço envolve minha cintura

Sinto a segurança que só sentimentos tão profundos e sinceros como os nossos
Podem proporcionar
Talvez fiquemos juntos uma vida inteira,
Talvez nos separemos no próximo mês
Mas a intensidade do que sentimos um pelo outro faz com que o tempo seja
Algo totalmente relativo
Aquilo que tua boca não transforma em palavras
Por vezes posso ler em teus olhos, olhos de Poe.
Longe de ti sou insegura
E minha mente divaga através dos mais improváveis pensamentos
Fazendo com que me entristeça ou acabe por aborrecer-me por
Motivos vãos
Preciso ouvir de ti a confirmação daquilo que vejo em teus olhos
Preciso sentir no teu abraço todo o carinho que tens por mim
Preciso saber que tu és só meu
e assim, serei por inteiro,
Só tua.


E foi, e ele dela, porém nunca inteiramente, pois o sentimento nunca brotou espontâneo, e essa palavra, brotou, o uso dessa palavra, esclarece que lá nunca teve nada, nem o vazio existencial patético moderno, nem a memória edificadora das identidades, nem a unidade, só fragmentos, mecanismos, modelos, métodos de agir, de olhar, de gesticular. Todos consumindo a energia saturada e gasta, o combustível insubstituível que esvai pelas falhas de caráter.

Sem lágrimas não se pode ter olhos de Poe, aquela misto de tristeza e vacuidade, de ser contemplativo, sensível, porém rude numa medida homeopática, não há esse dom, esse dom de verter sentimento, para quem não os tem, ou os emula mediante o uso desmedido de forças internas raramente carregadas. A esses, duas vezes infortunados, sobram somente as emoções básicas, os motores primordiais que os impelem à vida, ao sentido contrário da morte, deles não se extrai emoções ou sonhos, somente ações projetadas e objetivos concretos.

Qual surpresa daqueles que detectam tais seres! Qual surpresa ante revelações deles mesmos! Palavras expelidas por um impulso esvaziador das veias congestionadas pelos ataques do coração silencioso e econômico, que só faz uso da sua força na medida do necessária: luta, fuga e reprodução. Somente para isso serve, e os pulmões só respiram, as vísceras só digerem, e os rins só filtram, e os olhos… Os olhos só enxergam. E cada órgão segue sua função primordial, sem usos indevidos, sem inovações, estão todos restritos à sua natureza primeira, inflexíveis como o cérebro que os governa na maior parte do tempo.Sem lágrimas, sem olhos de Poe. Toda a candura dela desabou sobre a realidade, toda ela banhou-se no suor do prazer mundano, na fonte de sêmen quente salpicado na garganta, no negror infausto e traidor, nas pessoas antes odiadas. Tudo tornou-se flácido e frustrante, ela a ele passou da revelação ao revelado, não havia mais mistério, e os fatos futuros comprovaram as alusões pretéritas, e o sentimento presente implorou pela fantasia, contudo cada órgão somente cumpriu sua função, e os olhos continuaram secos, apesar de rasgar por dentro uma vontade estranha de ler um poema perdido e certamente assassinado por mãos alvas e umedecidas pela raiva.

Ah! Ele não podia nem umedecer as mãos pela raiva nem pela tristeza, somente pela dissimulação, e desde criança adquiriu esse poder para compensar a deficiência engatilhada pela mãe quando ele percebeu que o seu choro dava prazer a ela.

O chinelo desceu firme sobre as costas:

- O que foi, guri!?

Paf!

- ‘Tá louco!

Paf!

E as pancadas pararam porque o rapaz determinou-se em não chorar, o que o acompanhou para a toda a vida, tornando-lhe apático e estranho, até que aprendeu a dissimular, todavia logo percebeu que o esforço o tornava artificial, que no âmago dos alvos nascia um alerta sobre o ser na sua frente, algo inconsciente que berrava sobre a natureza daquela interação agradável. O que ele fez para resolver esses problemas com o sistema? Nada, só decidiu que deveria extrair o máximo de qualquer um antes que essa impressão destruidora fosse acionada. Em alguns era instantâneo, em outros, muito lento, quatro anos foi o maior período.

Conheceu-a através de amigos, num apartamento sujo, poluído por guitarras distorcidas e gente mal vestida, sempre usando roupas rasgadas e pulseiras espalhafatosas e ridículas, numa sala com um sofá entulhado de gente que balbuciava um inglês torto de ensino médio público. A voz dela fulminou-o, percorria o ar macia, acariciava o caminho para entrar doce nos ouvidos, começou a falar com ela somente para… Para fazê-la falar, sua timidez mantinha encerrada aquela melodia, ele simplesmente não poderia permitir esse cárcere, então a fazia falar, sobre roupas, sobre música, sobre guerras, sobre cinema, sobre animais… Sobre os dois.

Então ele percebeu que para continuar ouvindo-a, a voz, não ela, ele deveria tomá-la para si. E foram morar juntos na casa da progenitora, e tudo explodiu como sempre explodia, e a voz tornou-se dura, e o amor transmutou-se em líquido e escorreu finalmente para o ralo mais próximo, e daquele sentimento só subiu o odor acre e daquela vos nem bafo permaneceu, simplesmente fundiu-se com o ar e foi para sempre ter com outros ouvidos.

Olhos áridos de Poe derramaram areia sobre o colo. Ele pensa naquilo que se foi, compara, bate o rosto contra as mãos, o corpo pendula em silêncio, a face rugosa porém jovem busca algo nos próprios olhos, na ponta do nariz, no contorno de algo qualquer, na ondulação do cabelo, até no tamanho dos fios. Só que nada brota, ou chora, ou responde, ou satisfaz. As linhas somente cruzam-se e emaranham-se e dão respostas insensatas, e tudo isso, no fim, sobraram somente fotos desnudas e estéreis que oberavam com seus olhos vazios um pênis rijo sendo massageado na noite para chorar seu pecado na candura do sentimento emulado.

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