SOBRE HISTÓRIAS E MOSCAS – PRIMEIRA PARTE: O OUTRO ENQUANTO PROBLEMA CONTINGENTE NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA PESSOAL


Estou com a interface de um software editor de texto aberta diante de meus olhos enquanto escrevo. Esta página branca virtual lentamente sendo preenchida com as letras destas palavras é a única fonte de luz no quarto, assim como a chuva e meus dedos são os únicos provedores da trilha sonora desta trama.

Eram.

Eis que surge uma mosca que, atraída pela fonte de luz, tornou-se uma nova provedora de sons para minha audição. E que péssima provedora de sons uma mosca consegue ser... Intrometendo-se na execução da trilha que eu havia escolhido para este conto.

Eu sou apenas alguém qualquer tentando escrever a própria história e considero a mosca uma dificuldade que surgiu na construção da minha história.

A mosca influenciou tanto o rumo do que escrevo que a altura desta frase a palavra “mosca” já foi digitada 5 vezes.

Consegui.

Enquanto a tosca mosca batia na tela do computador no contratempo da trilha pretendida eu a surpreendi com um peteleco. A mosca foi arremessada e não vai mais me atrapalhar.

A chuva parou e agora, se meus dedos param, já não possuo trilha sonora para este conto. Entre os silenciosos intervalos destas letras, eu percebo a mosca caída sobre a mesa, seu corpo está morto, dilacerado. O peteleco de meu dedo foi o estupro fatal para a vida deste inseto.

A mosca viveu uma vida de mosca até seu último segundo, nenhuma mosca age como um chimpanzé nos segundos que antecedem a morte. Essa é a realidade.

“Moscas utilizam a luz para orientar-se. Eu sou uma mosca. Você me atraiu e me matou por causa disso” – no universo imaginário onde uma mosca transmitisse esta reflexão por via telepática no momento da morte, seria natural sentir culpa.

Mas no universo chamado realidade, este onde nenhuma mosca é telepática, não me culpo pela morte da mosca, culpo-me apenas por ter deixado uma mosca ser tão importante para minha história.

Fim.

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