CALCINHA


- Eu não acredito nisso! Você não quer fazer isso?

Sorrisinho sacana, aquela leve mexida de cabeça acompanhada do cafajeste estreitar de olhos. Ela sabia que as coisas voltariam a ser como antes, ao menos naquele momento. Mais um fio de esperança na trama intrincada daquele relacionamento apodrecido.

- Uau! Quer fazer isso mesmo?!

Quase uma década. A boate cheirando a mijo e decorada com faces torpes e ansiosas por algo qualquer e excitante nem mais existia, eram só um casal de quase trinta anos engolido pelas noites loucas e inconsequentes, no buraco onde estavam todas as ilusões da juventude irresponsável já se perdiam na realidade do mundo do trabalho. Ao menos as dela.

- Você é depravado! Eu devo estar com o cara errado!

Vadio. Como o pai costumava chamar. Desde cedo assumiu a função a que a família o dignara. Nunca pensou muito no futuro, nem no presente, mas por alguma razão o passado sempre foi atraente, mais do que gostaria, não muito diferente do resto da gente. Um tipo de imã temporal amaldiçoado que não o deixava esquecer que estava preso em algum lugar, que não podia se afastar demais do ponto x, ou algo assim.

- Hoje?!

A palavra pegou. Não tinha outro modo. Cresceu enganando, ludibriando, dissimulando, e todas as outras palavras que designam um salafrário que somente explora. Um perfeito vadio, ou melhor, um perfeito vadio depravado.

- Explica melhor, eu... eu ainda não entendi.

- É bem simples: você deve usar aquela calcinha – ela usou, como esperado – a gente começa normalmente, eu te acaricio – flanqueou com as mãos a cintura bem formada – te deixo toda molhadinha. Quando você ‘tiver bem excitada – abraçou-a com força, por trás – você fica de joelhos e começa a me chupar – ela desceu, quase que maquinalmente, como se estivesse sendo controlada – você se masturba enlouquecida enquanto me chupa – ela chupou, claro, e se masturbou, claro. Ele só não contava com * Ah! Cuidado! * dentes, sempre atrapalham – Ai eu gozo no seu rosto – o jato de sêmen varreu da boca aos cabelos, ela fingiu gostar, gemeu – depois o sessenta e nove, você por cima, sua buceta na minha cara e o meu pau na sua, me excita outra vez – a garota chupava, o garoto lambia. Línguas convulsivas. Gemidos, prazer. O casal em harmonia. Rejuvenesceram uns seis anos, para eles era muito – depois você fica deitada de costas, tira a calcinha, me entrega e abre as pernas, então eu começo a me masturbar enquanto cheiro a sua calcinha, você tem que se masturbar também – isso! Isso! * Fuck! Fuck! Fuck! * – Ela se masturbou, olhos fechados, abriu um deles quando começou a ouvir gemidos graves, nunca o tinha visto em tamanho êxtase, teve que espiar, achou estranho, mas bom ao mesmo tempo. A calcinha enfiada nas narinas, quase preenchendo as vias aéreas. Era a melhor transa do mundo – então a gente goza junto – Ahhh!!! Isso!!! – não que ela não estivesse gostando, até teve sentimentos sinceros com a aquela estranheza toda, mas não conseguiu gozar, teve que fingir, não gostava, mas fingiu, coisas da vida.

Olhos fechados. Evitaram se encarar, como se tivessem cometido um tipo de pecado, como se as idas à igreja, quando crianças, cobrassem alguma explicação. O braço do garotão contornou os ombros dela, ela recostou a cabeça no peito dele.

- Eu te amo.

- Eu sei.

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- Vou trabalhar – ele deitado no sofá. Wining Eleven.

- Hum?

- Meu beijo – beijou-a com afeto – Te vejo depois... Ah, foi bom ontem – piscada de malandro, arrancou dela um sorriso sincero – Tchau.

- Droga! Perdi outra vez...

- O quê?

- Nada! O jogo. Hehe!

- Até depois.

Mais uma vez conseguiu, conseguiu o que queria, ela fez exatamente como deveria fazer, teve o problema com os dentes, mas tudo bem. Aquela calcinha, cheiro delicioso, pensar nela já fazia o sangue fluir, por algum motivo aquela calcinha parecia ser mais atraente que a própria mulher que a usava, não! Certamente era melhor. Ela só não realçava o corpo da outra, era diferente, era quase humana, sex, bela, simétrica, perfeita e só perfeita e tudo mais.

Rastejou até o banheiro, em desespero mergulhou no cesto de roupas. Vasculhou entre roupas de ontem, de hoje, de anteontem, de agora pouco, entre cuecas que se confundiam com papéis higiênicos, entre calcinhas com corrimento, penetrou, perscrutou até que, finalmente, a encontrou. Vermelha, com rendas, mínima. Parecia de criança. Desceu o nariz. Era um viciado, o cheiro de vagina entrando fundo no corpo, atingindo o cérebro, exigindo o orgasmo.

- Sim! Isso! Vai! Ah!!!

- !

- Hum?!

- O que você ‘tá fazendo?! Cheirando pó outra vez, você não tinha dito que – estacou – O quê?

-

- O que é isso?! Minha calcinha! – agarrou-a, o amante lutou até que, cedendo a um tipo de escrúpulo agora liberto, cedeu debilmente, sem esforço, como se nunca a tivesse possuído com furor.

- Eu. Eu...

- Eu?!

- Acho que fiquei com saudades de você, não sei o que me deu...

- Eu tenho que trabalhar. Acabei esquecendo o meu crachá – suspiro – vamos fingir que eu não vi nada disso – meneou a cabeça com desdém ou nojo ou repulsa ou uma mistura de tudo isso, ele só baixou os olhos envergonhados, a pele ruborizada. Enfiaria a cabeça no cesto de roupa suja, mas agora, por algum motivo, ele parecia encardido demais. Voltou ao video-game.

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- Sério? Tarado por calcinhas?

- É, sério.

- Hehehehe!!!

- Muito engraçado, e se fosse o seu namorado? – voltou a concentrar esforços na limpeza das mesas, fingindo não se importar com o comentário maldoso da companheira de trabalho.

- Nossa. Deve ter sido... deve ter sido constrangedor.

- Nem imagina... pegar seu namorado transando com uma das suas calcinhas. Acho que não dá mais certo – queria que alguém dissesse o contrário.

- Acho que não – o olhar triste da amiga. Sabia que, apesar dos defeitos, ela gostava dele verdadeiramente, não entendia os motivos, só sabia que era assim – Olha. Somos amigas desde crianças. Eu sei que você gosta daquele traste, não sei o motivo, mas você gosta muito dele. Não é como os outros caras que você namorou. Quero dizer, você teve problemas com os outros, você terminou, ou o contrário – riram juntos – depois fomos no Pup’s Bar, tomamos umas e fim, mas com ele eu sei que é diferente e sei também que essa coisa toda com a sua calcinha é bem estranha, mas eu acho que não é pra acabar de vez, eu mesmo tive uns namorados, e umas namoradas – mais risadas cúmplices – bem estranhas, quero dizer, você não precisa sofrer por antecipação, entende? – estavam de mãos dadas, os panos de limpeza preguiçosos sobre as mesas – Vai lá, chega mais cedo em casa, faz uma surpresa, quero dizer, algo novo – sorriso luminoso, de confiança.

- Mas e o trabalho?

- Eu te cubro. – piscou o olho companheiro, mesmo sabendo ser esta a coisa errada.

- Ei! Voltem ao trabalho suas preguiçosas!

- Tudo bem, Sr.!

A calcinha. A calcinha. Vermelha. Rendas. Humana. Sex. Transou com a mulher, não se satisfez. Procurou outras mulheres ao invés do emprego, não se satisfez. Em casa, só, depois de uma tarde de caminhadas adulteras. Precisa relaxar. A calcinha lá, na gaveta, inocente e tentadora. Os últimos momentos juntos. A duas transas inesquecíveis, primeiro entre as pernas da dona, depois sobre a imundice daquele cesto. Agora, agora deveria ser na pureza da cama, só os dois, sem interferências, enfrentando todos os riscos pelo amor libertino e proibido.

- Hum, vou comprar vinho, ele vai gostar, faz tempo que a gente não toma nada decente, vou fazer esse sacrifício e comprar um pouco...

- Sim! Isso! Ah! Isso!

Sentia a pele dela, sentia o sangue dela, as contrações dela, podia ouvir o gemido dela. A calcinha projetava no corpo do amante suas rendas negras, o envolvia, o abraçava. Ele sentia, entregava-se, mergulhava naqueles braços etéreos e apaixonados. Ela cedia com prazer, depois recuava, provocando-o. Cuspia seu cheiro no corpo masculino e suado. Implorava por fungadas abrasivas e pujantes. Cada inspiração um gemido, cada gemido um orgasmo. A calcinha queria, a calcinha o dominava, o escraviza, a calcinha.

- Talvez eu esteja exagerando mesmo, foi só um fetiche. Pensando bem a Kat já viu coisa bem mais estranha, eu não preciso me preocupar, foi só um fetiche bobo, claro que ele me ama.

- Ah! Eu te amo! Eu te amo! Ah!

- Amor?

- Ah! Eu te amo!!!

Seguiu os gemidos calorosos. Seriam para ela? Eram exaltados demais...

- O que é isso?

- !?

- Outra vez! – lágrimas nos olhos. A garrafa de vinho cedeu, era como a representação material do sentimento da mulher: estilhaçou-se no solo. Líquido e vidro misturaram-se. Os joelhos do amado da calcinha beberam do vinho, estava nu com o tronco sobre a cama, lambia a peça íntima, como se nela estivesse fazendo o último ato oral da sua vida.

- Eu posso*

- Pode o quê? Explicar por que gosta mais da minha calcinha do que de mim?

- Eu*

- Seu retardado! Seu nojento! Seu depravado! Seu sujo! O que eu tive que aguentar?! Toda a sua preguiça e desrespeito! Sua falta de atenção! A insegurança! Seu porco! Seu nojento filho de uma puta! – toda a tensão e frustrações e decepções do trabalho e do amor e da vida que nunca dava certo, tudo vindo junto, em enxurrada, fazendo o corpo bambear e deformar-se e atacar desesperado aquela coisa catalisadora e potencializadora de todas as mágoas que por tanto tempo carregou. O alvo defendeu-se sem destreza. Nu, o órgão balançando, ora tocando nele, ora tocando nela. Mãos com mãos. Acabou por dominá-la sem querer, no susto, com a calcinha segura, pendendo entre a cabeça dos dois. Os quatro olhos olhando-a com desejos diversos.

- E eu? Nunca se perguntou?! Sempre foi você e você! Sempre com o seu egocentrismo e narcisismo barato! Sempre pensando em si mesma! Sempre me considerando o objeto que deveria te distrair, te elogiar, te proteger, te dar segurança vinte e quatro horas do dia! – virou-a bruscamente, com desdém jogou-a sobre a cama – acha que a minha vida é só você! Que o nosso relacionamento é só você! E eu! Mesmo na cama sempre tive que suportar seus fingimentos fajutos! Sua ânsia insignificante e patética por alguém que te dissesse o que fazer! Mas ao contrário de você – os olhos assumiram brilho incomum, quase mágico – ela nunca me exige nada, ela nunca me pressiona, ela nunca briga comigo. Pelo contrário, entre eu e ela não existe somente elogios e carinho, desde o primeiro dia até hoje. Nela eu descobri o que nunca achei em você, nela eu encontrei cumplicidade e compreensão.

- Do que você ‘tá falando, seu depravado nojento?!

- Dela – envolveu fraternalmente, com ambas as mãos, a calcinha vermelha e rendada. O casal proibido finalmente revelava sua união.

- Você é louco, dá o fora do meu apartamento, seu retardado!

- Sim, eu vou, e ela vai comigo. A única que verdadeiramente me compreende, o meu verdadeiro amor. – e o olhar que dirigiu ao simples objeto cuspia a pura ternura da paixão inocente. A mulher abandonada buscou desesperada na imensidão dos seus sentimentos algo que se assemelhasse aquela demonstração de paixão, mas nada encontrou. Não houve sequer dia em quase uma década em que ela flagrasse algo perto da magnitude daqueles sentimentos. Não podia aceitar ter sido menos amada que uma mera peça de vestuário. Ter sido trocada por uma calcinha. Não podia. Tomou em mãos um fragmento da garrafa do vinho da reconciliação e cravou-o fundo no pescoço do traidor. Antes de adormecer vomitou com esforço as palavras finais:

- Eu... eu...

- Sim?

- Eu te am* - então beijou a calcinha.

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