- Abre a porta! Eu sei que tá em casa! Sinto seu fedor! Já são dez dias de atraso, seu merda! Se não pagar até o fim da semana, chamo o despejo!
As batidas diárias do velho usurário nem o incomodavam mais, ficar ali prostrado sobre o colchão amarelado, dúzias de pacotes de chocolate, salgadinhos, comida congelada, latas de refrigerante e outros itens de dieta de mercado de conveniência era o suficiente para John. As explicações para o erro dele já bem conhecemos, no entanto, ele, o maior interessado, não pode nem por mim nem por você ser ajudado, acha que para si está fazendo os maiores dos favores deixando-se perder seus dias em desespero desmedido em vez de reagir, mas que fazer? Estava em choque desde o acontecido, só teve forças para comprar o máximo de guloseimas que pôde com o resto de dinheiro da saída do trabalho e cair naquela cama para se tornar um monstro devorador de lixo. Nem ao banheiro ia mais, defecou nas calças até onde pôde, quando não mais cabiam fezes nela, abaixou-a o suficiente para deixar o bolo fecal escorrer livre do reto para a borda da cama, agora com um rastro marrom que servia de guia para a merda que se acumulava em punhados cada vez maiores no solo. A urina vez ou outra escapava-lhe amarelada e mal cheirosa da uretra, moscas paridas de cadáveres acumulavam-se em derredor das poças formadas em partes diferentes do quarto – a única diversão de John era manipular seu pênis para lá e para cá nas vezes em que se dava conta que estava mixando. Flutuando em bandos cada vez mais numerosos, as moscas disputavam com as baratas os restos dos hambúrgueres rejeitados por John. O fedor já se podia sentir vez ou outra nos apartamentos vizinhos, sobretudo quando John resolvia mover-se para dar um descanso para um dos lados do corpo, o odor estagnado, em resposta, então parecia mover-se para fora do apartamento para buscar um local com menor pressão de gazes, que se tornavam mais compactados pelos flatos ruidosos que ele liberava com vigor minutos após comer mais uma rodada de salgados, doces, refrigerantes e hambúrgueres acebolados.
Numa manhã, sem qualquer motivo, John decidiu ligar a televisão, com um grande esforço que lhe rendeu uma fuga inesperada de gazes, alcançou o controle e ligou o aparelho. Passava um telejornal em que o apresentador, com uma expressão forçada de dor, dava a notícia da vítima da vez do trânsito enquanto cenas do local do acidente eram exibidas até culminar em duas ou três fotos sorridentes da falecida:
- Morreu, hoje, atropelada na rua ***, a jovem Ester de Matos Freitas, vinte e dois anos. Ela trabalhava como secretária e estudava Biologia na UF**. O motorista fugiu sem prestar socorro, a vítima chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital. Familiares irão velá-la hoje a tarde no cemitério ***. Uma pena! Uma pena! Até quando os jovens do nosso Brasil vão continuar morrendo nas estradas, Elizete?
- É um problema grave, Osmar. Mas a gente sabe...
As análises da pan-especilista televisiva, o assentimento dos âncoras e suas repetitivas explicações decoradas sobre casos parecidos não interessavam a John. Há dias que ele não se levantava da cama, mas a notícia fê-lo, com esforço, sentar-se na beira contaminada de fezes, sem nem mesmo perceber, mergulhou os pés no monte de esterco acumulado, mas em vez de chorar, sorriu, e o sorriso expandiu-se numa risada larga que virou uma gargalhada descontrolada. As lágrimas agora eram de uma alegria sincera, riu-se até literalmente cair, rolou no chão sobre a merda e o mijo, espalhando-os sobre as poucas partes ainda não contaminadas do quarto. Com a mandíbula dolorida, continuou a rir-se mais e mais, ignorando completamente o velho que à hora do almoço, religiosamente, ia bater na porta:
- O aluguel, seu bosta! Sinto seu fedor! Agora ri da minha cara é? Vai ter despejo, Jon! Despejo!
- É John, seu valho gaga! E vai pro inferno com o seu despejo!
Respondia o outro após dias e em meio a risadas convulsivas.
- Cê tá fudio, moleque! Cê tá fodido!
O riso cessou de pronto. John pôde mesmo escultar os passos vigorosos do velho descendo a escada. Era o momento de fazer algo, não poderia mais ficar ali jogado em meio ao lixo parido dele mesmo. Deveria, finalmente, agir como deveria ter agido desde o início da sua vida: com temeridade para conseguir seus objetivos, sem pensar nas consequências. E aquele episódio, aquela morte, agora sabia o nome dela, a morte de Ester, seria o evento marco da mudança indelével da sua vida. Contudo, precisaria vê-la uma última vez, vê-la sendo enterrada seria o evento simbólico para o reinício, com ela iria todas as falhas, uma vida miserável, os desejos insanos, a terra sobre o caixão de Ester seria a terra sobre uma vida morta. Encontrou, após algum esforço, uma muda de roupa um pouco limpa, pelo na medida para não ser confundido com um mendigo. Tomou um longo banho de não menos que uma hora, arrumou-se como deu com restos de perfume, desodorante e gel. Antes de sair, espiou pela janela para ter certeza que o velho não estaria de tocaia na saída do prédio e desceu as escadas com certo vagar que não era muito condizendo com o medo inicial de ser cobrado, mas que se mesclava perfeitamente com a estranha leveza de espírito de John. Aquele reinicio haveria de ser mais que um mero assistir de caixão sendo engolido por terra.
O dia ensolarado alimentava as plantas, os pássaros gorgeavam, umas menininhas pulavam corda, uns garotos brincavam de taco, o mundo e o clima seguiam felizes naquela belo dia, ideal para uma praia, quando John chegou ao cemitério. Ainda teve tempo para ver um homem já idoso, acompanhado por uma moça ruiva que deveria ser sua família, depositar um vaso de flores sobre a caixa da falecida esposa. Ficou ali observando o contraste do rosto triste do idoso com as faces alegres das tenras crianças que brincavam na rua ao lado do cemitério. Esperou ainda umas duas horas que o cortejo com o corpo inerte de Ester aparecesse.
O carro mortuário, como mandava a tradição, seguiu em lentamente até a capela onde a morta seria velada. A mãe seguia ao lado do marido, que ia aparando-a, quase arrastando-a, toda as suas forças haviam sido sugadas pelo pranto constante desde a notícia do acidente e seu fatal desfecho. Homens jovens e com boa aparência de tristeza profunda moveram o caixão com especial cuidado. John não pôde ver o rosto dela, aproximou-se do pequeno séquito, mais perto pôde constatar que o caixão era completamente fechado. Foi tomado de um súbito calafrio, queria vê-la uma última vez, estava ali justamente para isso, para por fim à agonia e encerrar de uma vez por todas essa parte obscura de sua vida. Estranho o fato, o corpo não havia sido severamente danificado, pelo menos foi o que a notícia fez parecer, não havia motivo para velá-la em caixão fechado. Em pouco tempo, todas as pertubações de John foram respondidas por um par de senhorinas que talvez nem parentes eram, pois não pareciam mais curiosas que abaladas, apesar de estarem vestidas a rigor:
- Caixão fechado, que exagero, uma menina tão bonita.
- É. Mas é que a mãe quis assim, disse que não poderia ver a filha morta.
- Mas deixa o velório tão desanimado, não acha?
- Ah! Dalvina! Você diz cada coisa!
- Eu falo mesmo, no meu velório, quero caixão aberto, tudo bem bonito e um monte de flores...
Como ele poderia vê-la uma última vez? John não conseguia encontrar uma resposta imediata e enquanto pensava numa solução, o caixão já havia sido depositado sobre os suportes. Flores enfeitavam todo o lugar e inundavam-no de uma fragrância que rememorava um temor supersticioso na mente de todos. Aquelas peças de decoração, o Iejus Nazarenus Rex Iudeorum observando a cena do alto de seu flagelo, as quatro velas ao seu redor reacendo-lhe a chama do coração para a primavera iluminada guiar o caminho da defunto para o reino dos céus, em contraste absoluto com a vida ultramoderna que a falecida vivia, despertavam nos jovens uma resignação comedida ante os conselhos dos mais velhos, era como se ali, todas as tradições outrora abafadas renascessem e fizessem todos os presentes servos de uma força maior que os ordenava como súditos de uma mesma causa. Ao mesmo tempo, a atmosfera intoxicava a todos com as fantasias que agora se faziam verdade sobre a vida dela e seus hábitos, antes odiados, agora, todavia, eram esquecidos ou legados a cantos obscuras da memória para dar espaço aos momentos de felicidade, se em outros tempos não tão brilhantes, reluzentes nesse momento singular. Assim iam as cabeças de quase toda a gente, num misto de luz e escuridão, vez ou outro manifestando-se em comentários sussurrados que John ouvia ora sem querer ora aproximando-se silenciosamente por pura curiosidade sobre aquela criatura que conhecia só de corpo.
- Ela ia se formar ano que vem.¹
- Era a melhor aluna da classe.²
- Ela adorava brincar com o meu gato.³
- Fazia trabalho voluntário no lar de idosos.4
- Doava sangue sempre que podia.5
- Adorava crianças.6
- Era tão trabalhadora!7
- Era uma piranha.8
- Sempre tão religiosa! Tava sempre na igreja.9
Cada qual com seus julgamento, positivos e negativos, faziam fila para, após a missa mecânica do padre – um sujeito com seus cinquenta anos e com a conta perdida de quantas exéquias havia feito a Deus – cumprimentar os pais da morta. O padre, por seu turno, foi-se para uma saleta aguardar o fim da vigília e o momento final do enterro. John ainda o ouviu resmungando:
- Calor dos infernos... Requiem aeternam. Não aguento mais...
Sem pensar no porque estava agindo dessa forma, John entrou na fila daquelas pessoas sobriamente vestidas, por motivo especial algum, apesar de um tanto amarrotadas, as roupas que ele havia encontrado naquela busca rápida eram pretas e até quase adequadas, o que permitiu-lhe misturar-se à multidão. À medida que se aproximava do caixão, o suor escapava-lhe da pele. Seria aquele o momento final para vê-la mais uma vez, precisava daquilo, precisa contemplar o rosto morto dela para esquecê-la para sempre, somente diante daquelas faces frias, encovadas e pálidas poderia expulsar das suas lembranças aquele semblante rosado e cálido. No momento em que ficou frente a frente com os pais delas, desviou os olhos para o caixão, engoliu seco, estendeu as mãos na direção do esquife.
- Eu…
Cumprimentou-os.
- Meus pêsames.
- Obrigado.
- Obrigada.
Retirou-se dali o mais rápido que pôde. Fora da casa mortuária. John correu para longe como se aquele cadáver pudesse a qualquer momento romper o esquife para persegui-lo e puni-lo por ter cogitado profanar seu réquiem com desejos tão vis. Quem era ele afinal para outorgar-se o direito de continuar desejando-a mesmo após a morte? O que justificava o que elesestava prestes a fazer? Não conseguia encontrar resposta. Arrastou-se até seu apartamento. Na porta, encontrou uma carta do velho, um ultimato: “amanhã, suas tralhas estarão na rua!”
- Dane-se!
Bateu a porta. Chutou uma sapateira velha e dela saltou um livro esquecido e parcialmente lido em algum momento da vida para alguma prova inútil da escola. Olhou-o longamente e lembrou-se apenas dumas frases soltas de poetas mortos que lhe fizeram sanar todas as dúvidas que o corroíam naquele instante: “É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana”
Sabia, depois daquela leitura iluminada, o que tinha de fazer para resolver o caso e nada poderia impedi-lo desta vez, nada. Tinha que unir-se a ela, tê-la aninhada em si, afinal, não era “ao desejo e [à] procura do todo que se [dava] o nome de amor”? Não era ele a metade dela e ela a dele? Ambos haviam sido separados nos primórdios dos tempos. Era a explicação que se manifestava como a mais correta na cabeça confusa de John, não atinava ele que Aristófanes estava mais zombando que querendo esboçar uma teoria concreta sobre o amor e sua gênese, mal sabia John que o filósofo era na verdade poeta, e menos poeta era do que era comediógrafo. Na mesma noite, foi ao cemitério...
Os portões escancarados, convidativos e protegidos por dois anjos com lâminas flamejantes ali dispostos para proteger os corpos desencarnados até o momento da ressurreição. Seria essa uma interpretação, quem sabe, daquelas duas peças de rocha barata e artificialmente moldadas para imitar o trabalho extenuante de um escultor verdadeiro. Ainda que fossem imitações rasas de obras em outros tempos primas, impunham por si um respeito supersticioso que penetrava fundo o coração alucinado do nosso amigo John. Diziam a ele: “saia! Vá embora!”. Quase os viu moverem-se. Recuou estarrecido. Passou a mão suada pelo rosto igualmente imerso em pavor. O corpo tremia buscando o ar. Da ponto elevado onde ficar o cemitério, pôde ver os caminhões e carros que cruzavam a rodovia logo abaixo, espaçados, às vezes em intervalos infinitos, uns iam e outros vinham ou o inverso, não se sabe, indiferentes ao homem pálido que olhava com suas pupilas esgaçadas a torre duma igreja que se erguia por entre as casas, a luzes brancas de holofotes iluminavam-na a partir da base, destacando-a entre as trevas que se avizinhavam na forma de tênues pontos luminosos que se deixavam engolir pela noite. Era imperial entre ao que se ia aquela igreja, porém trevosa e convidativa às práticas proibitivas, emanava dele o contrário do conselho dos anjos, e por ela movido, não teve dúvida Jonh: era chegado o momento de ser o homem adiado há tanto.
Os passos largos ignoram a distância; a determinação, a fadiga; o desejo, a moral; a animosidade, a humanidade; o destemor, a prudência; a fúria, a piedade. Deslizou por entre os túmulos, destroçou co' os pés as baratas comedoras de cadáveres, por entre a podridão dos novos mortos caminhou como se a eles fosse afeito, sem temor, pôs-se de fronte ao sepulcro dela, as flores ainda frescas da tarde lamentosa; a foto, de tempos de há pouco exalando vida crua, uma engenhosidade de criatura bem feira, criada para a atenção. Olhos ensandecidos, escorridos de lágrimas forçadas para a fora pelo franzir de raiva da face; punhos cerrados como se preparados para a briga. O ofegar que antecede o crime, a fronteira final que separa as humanidades. Ali estava John, vendo-se do outro lado de algo que poderia jamais descrever em detalhes, sabia que não deveria, sabia que o correto era retroceder, todavia, com quanto mais força resistia, com mais força era atraído.
“É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. É só uma ação, é só matéria. Ah! Ah! Ah! Ahhhhhhhh! Sua vadia! Sempre quis isso! Sua vadia! Não é!? Vadia!!! Ahhhhhhhh! Rrrr! Ah!”.
Sequer lembrou-se dos detalhes nosso amigo John, e como você pôde perceber pelo áudio, não foi aquela uma simples transa de 15 segundos com um corpo, foi o descarrego completo duma alma que se deixou sair toda pelo pênis e que entrou seca numa vagina igualmente seca, porém fria, mas agora aquecida pelo resto de sangue que sobrara após o embalsamamento, pelo calor do falo profanador, pelo sêmen e seus filhotes naquela jornada sem destino, e também, claro, pelo sangue do estuprador, sangue arrancada pelas 67 penetrações agudas, há tanto insaciadas com o simulacro sempre insuficiente das mãos e pelas imprecisões do pensamento. Exausto, olhando para o corpo estirado, e agora sentido um odor antes camuflado pelos sentidos em erupção, observando o líquido branco que escorria por entre as pernas dela junto com o sangue de ambos, sentia repúdio, todo pensamento dela só lhe causa asco, a visão daquela morta nua, meio que jogada de lado, com a lua cheia refletindo o sol, a luz noturna iluminado o caminho de pedras irregulares que levaram nosso apaixonado para a empreitada final de sua vida, os mortos em seu descanso em derredor, cobertos por nosso cimento frio, bem ao fundo enterrados para nos lembrar que no arcano das mentes é o lugar deles; segundo o pênis na mão, ainda gotejando sua vida, pensou nosso herói: “Você merece um presente.” De posso duma pedra qualquer, John fez daquela ambiguidade uma só coisa. Rompeu em golpes sucessivos a pele e os nervos que ligavam seu falo ao corpo. Com tranquilidade incomum, enfiou-o vagina adentro – nela já tinha encontrado refúgio uma barata esperta –, certificando-se que estava bem instalado, John tornou a sepultá-la, agora não mais só, mas de posso de uma lembrança, de uma parte do outro que em tempos remotos fora sua metade, era agora ele e ela um, unidos até a eternidade do consumo das carnes pelos vermes e por aquela barata solitária que a vida trazia para aqueles órgãos, finalmente, tão íntimos.
John cambaleou para lugar algum e no meio de algo, caiu sozinho, comovido por uma alegria singular que só sabia arrancar do rosto aquela velha satisfação em vê-la todas as manhãs pela janela.
Notas
1 – Ainda faltavam dois anos.
2 – Não estava nem entre as vinte.
3 – Odiava gatos, brincava com eles só por educação quando estava na casa de alguém para não parecer insensível.
4 – É, isso era verdade, desde os quinze anos.
5 – Até descobrir, há uma semana, que tinha AIDS.
6 – Odiava-as, havia feito o aborto de um feto de três meses e meio quando tinha dezoito anos.
7 – Realmente, trabalhava desde os quinze anos.
8 – Mentira, a prostituição havia sido temporária, muito sofrida e só para pagar algumas contas.
9 – Só ia para agradar a mãe, na verdade era budista, iria preferir incensos e um rosário budista nas mãos àqueles crisântemos cafonas e um cadáver dependurado numa cruz olhando-a com pesar.
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