ABBEY ROAD

Capítulo I – Fim
“Na verdade eu nunca amei você, eu apenas confundi os sentimentos, nunca foi amor, apenas uma amizade forte, o que tivemos foi um erro!”.
(Risos).
Parece engraçado agora, mas na hora eu subi até o prédio mais alto da cidade e me joguei, quebrei as duas pernas e um braço...


Era apenas a primeira vez em que eu ouvia essa frase, que se repetiu tantas vezes, em tantas relações... Por mais que eu relutasse, quando eu finalmente me deixava envolver a garota me dizia isso, da segunda vez eu tentei me enforcar, não quebrei o pescoço, fiquei apenas sendo sufocado pela corda até que me vieram “salvar”...
O terceiro relacionamento deixou as cicatrizes mais feias, quando ele acabou cortei os pulsos, logo desmaiei e não sei como, mas conseguiram estancar a hemorragia!
Já é a quinta vez que estou internado no hospital por tentativa de suicídio (desta vez tomei veneno demais), os médicos e enfermeiras já me conhecem, minha família já desistiu de mim, estou sozinho no quarto com uma cama vaga ao meu lado. Cinco tentativas por cinco garotas diferentes... Devo ser vítima de uma maldição que impede meu suicídio, mais do que cicatrizes das tentativas frustradas, cada garota deixou uma cicatriz mais profunda em mim, uma marca que não consigo esquecer, um aperto no peito, um fardo que não consigo suportar...
Hoje a tarde passou rápido, distrai-me pensando em uma forma de matar-me.
Capítulo II – Ele
A cama ao meu lado foi ocupada, agora divido o quarto com um doente terminal (que inveja), ele deve ter uns 60 anos ou mais, barba branca e longa, magro e alto, sinto que serei muito baixo ao seu lado, mas não tenho medo, sou mais forte que ele, meus braços devem ter a mesma circunferência que suas pernas...
Eu ouço a sua respiração, sei que ele está acordado, não trocamos uma palavra desde que ficamos sozinhos no quarto, ele também sabe que estou acordado, pois me viro constantemente, estou inquieto, vim só para fazer uma desintoxicação e já estou há uma semana internado...
Qual será o seu nome? Que doença será que ele tem? Maldita curiosidade... Ah! O que eu tenho a perder mesmo? Vamos lá:
-Boa noite.
-Já é noite? Como perdemos a noção do tempo em uma cama de hospital...
Sua voz era grave, as palavras bem definidas, era como conversar com um trovão, em contraparte aos meus timbres médios.
-Realmente... E o que lhe traz aqui?
-O amor, e a você?
-O mesmo...
Sinto que ele soltou um leve sorriso ao ouvir minha resposta, tipo interessante, reparei que ele trouxe uma Bíblia consigo, vou puxar assunto...
-Reparei na sua Bíblia, é religioso?
-Sou ateu.
-Então porque a Bíblia?
-Literatura, meu caro, supera qualquer Dan Brown ou Sidney Sheldon...
-Até bulas de remédio superariam esses dois...
(Risos).
Tínhamos algo em comum, sinto que o destino me reservou uma ótima companhia.
Capítulo III – Tempo
Muitas experiências sobre livros lidos depois, muitos escritores difamados e aclamados mais tarde, muito em comum e muitas discórdias que resultaram em adoráveis tardes de debate, o tempo passava e eu adorava cada vez mais a companhia, já nem tinha pressa para sair do hospital (e acho que não sairia tão cedo, creio que minha família havia pedido para me deixarem internado), com exceção dos ataques dele, das tosses intermináveis e cuspis de sangue, tudo parecia perfeito naquele homem.
Estávamos há uns quinze minutos em silêncio (o que era raro tratando-se dos assuntos intermináveis que tínhamos), resolvi falar sobre minhas cicatrizes, nunca consegui compartilhar minhas experiências com ninguém, contei como amei cada garota, como morria toda vez que uma me deixava, desabafei, ele ouviu atentamente, mas não tentou dar-me conselhos como todos faziam, quando terminei senti que estava respirando com mais facilidade, sentia-me mais livre, foi então que ele começou a falar frases que alterariam todo o nosso futuro.
-Engraçado sermos colegas de quarto, você internado por querer morrer e não conseguir, eu por querer viver e estar morrendo.
-Você disse que também estava internado por amor?
-Sim... Por fazer amor com o único homem que amei...
-Homem?!
-Sim, sou homossexual, desculpe não ter contado antes...
-Não, sem problemas, continue...
-Ele era soro positivo quando me apaixonei, tivemos um relacionamento longo e ele morreu devido ao vírus, no primeiro exame que fiz depois de sua morte vi que também havia contraído o vírus... Mas eu faria tudo de novo.
-E por que luta tanto pela vida se seu amor já está morto?
-Para amar novamente, simplesmente para viver e ser feliz, porque é o que ele queria que eu fizesse...
Capítulo IV – Nós
Nossas conversas foram ficando cada vez mais íntimas a partir daquele momento, sempre me considerei tão heterossexual e agora me via completamente atraído por aquele homem, mais do que atração, eu estava amando, eu o estava amando! Louco de amor por ele, por mais que não houvesse falado sobre isso eu sentia que ele também me desejava, sentia o mesmo por mim, e era como se o fluído da felicidade circulasse em minhas veias.
Até que no meio da noite eu me levantei, caminhei devagar até a cama dele, finalmente pude olhar dentro dos olhos dele, senti seu olhar apaixonado e um calor correu pelo meu corpo, deitei-me ao seu lado, fechei os olhos e o beijei...
Não senti minha barba roçar na dele, não senti dois homens, senti sim dois corpos se beijando... Eram duas almas que se encontravam, enquanto nossos corpos se tocavam eram duas almas que dançavam pelo universo, e aquele hospital fétido parecia ter se tornado o Paraíso, nunca havia sentido aquilo.
E a sensação se repetia todas as noites, assim que a última enfermeira passava nos quartos, juntos sentíamos o amor. Quando nos entediávamos, compartilhávamos sentimentos com conversas, juntos aproveitamos o prazer da carne, sem pensar no amanhã.

Capítulo V – Começo

Certa manhã a enfermeira me acordou dizendo que eu havia ganhado alta e que meus pais haviam deixado apenas a chave do carro para que eu fosse dirigindo para casa, perguntei se havia algum problema se meu companheiro de quarto me acompanhasse até a porta, ela autorizou.
Engraçado, era tudo o que queríamos, óbvio que fugimos juntos.
Vimos o pôr-do-sol, vimos o nascer do sol, nos amamos e apreciamos nossos últimos momentos sobre a terra, morremos juntos, em liberdade.
Não sei se alguém um dia vai aprender alguma coisa com a minha história, passei a vida inteira tentando morrer e quando finalmente entendi a vida, morri... Mas eu faria tudo de novo.
Eu faço uma pergunta e ele não responde, olho para o lado e vejo que está dormindo, tento acordá-lo inutilmente, levo a mão até seu rosto, está gelado, ele está morto, mas mantém um sorriso terno, o rádio toca The End dos Beatles, eu não fico triste, sorrindo olho para frente, ao ouvir a buzina de um caminhão percebo que estou na contramão.

Um comentário:

  1. Consigo até mesmo ouvir a batida da música ao imaginar o caminhão na contra-mão...




    Gosto deste conto, já o conhecia de outros tempos, mesmo sem me recordar que tempos são estes... Mas uma coisa não mudou desde a primeira vez que o li: sempre me questiono sobre qual seria uma boa alternativa para se "morrer" uma quarta vez...

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