AMO-TE AOS PEDAÇOS


Há quatro meses trocávamos ideias pela internet. Jamais nos tínhamos encontrado pessoalmente, mas ela tinha algo que eu não conseguia descrever, atraía-me como a carniça atrai um abutre. Era sujo, mas ainda assim bonito. Falávamos de coisas grotescas, a atração que ela conservava por cadáveres. Era legista. Mesmo os meus segredos mais imundos, como me masturbar cheirando as calcinhas de minha mãe, eu os contava todos. Não sei, não sei por quê.
            
Ela vivia noutro país: teclávamos em inglês. Seu nome era P... Possuía um lindo par de olhos castanhos e amendoados; sua aparência, contudo, não fugia do padrão do seu povo, mas ainda assim eu vi nela algo que não podia mensurar, explicar; era-me asfixiante. Sentia-me mal se ficasse um só dia sem vê-la pelo webcam ou sem ler os seus textos habilmente redigidos.
            
Vivia com o pai. Único ente da família, juntamente com ela, que havia sobrevivido a um lastimável acidente de avião. Todos tinham morrido quando viajavam para uma grande reunião de família que acontecia todos os anos. A família era rica até então. Quando o inventário foi finalizado, tudo passou para as mãos do homem que vivia com ela hoje. Ele torrou o trabalho de três gerações em bebidas, festas e mulheres. Deixando a própria filha na miséria.


Atualmente, quase uma década depois de ter sumido, o pai dela reapareceu e implorou para ficar alguns meses até se “recuperar financeiramente”. Passaram-se meses, anos e ele ali continuou. Agora quem o sustentava era a filha cuja qual ele privou de grande fortuna, assim como de amor e respeito. Estuprava-a com freqüência. Muitas vezes eu a aconselhei a buscar ajuda, chamar a policia. Ela, todavia, sempre se recusava dizendo que ele, apesar dos defeitos, era tudo o que tinha, não poderia ficar sozinha mais uma vez.
            
Pedi que para minha casa viesse, aqui, no Brasil, seriamos felizes longe do monstro que ela chamava de pai. Ainda assim ela insistia em ficar. É difícil compreender o que se passava em sua mente. Mas acho que ela tinha medo de mudar, como a maioria de nós. Ficamos acostumados com certa maneira de viver, simplesmente nos adaptamos a certas situações que jamais deveriam ser toleradas; como um namoro muito longo: estar com a parceira tornar-se um hábito, como assistir televisão... e igualmente entediante também.
            
Sabendo que ela sofria, ofereci-me para ir até lá e acabar com o caso: ela negou sob pena de não mais conversar comigo. Não podia perder o contado com aquela doce mulher. Doce! Como era! Mesmo a distância não foi capaz de abrandar nossos desejos lascivos. Passamos a praticar sexo pela internet. Há muitos insensíveis que riem dos que conservam essa prática: dizem isso, pois jamais tiveram o amor emergindo dos seus peitos como um vulcão que escapa do solo da terra.
            
Fazíamos as mais diversas brincadeiras: certa vez ela fingiu ser uma elfa, aquelas de orelha pontuda consagradas no filme “O Senhor dos Anéis”, que estava sendo molestada por um grupo de terríveis assaltantes Orcs; a capacidade dela de relevar os martírios que o seu pai lhe afligia era inacreditável. Minha missão era salvá-la. Eu era bem sucedido depois de uma luta sangrenta. Ali mesmo, em meio aos cadáveres deformados pela espada, nós transávamos loucamente.
            
Esses “contos ao acaso” satisfaziam sempre o desejo que ela tinha pela morbidez e a minha luxúria que em outros tempos sempre fora abafada pelo meu pai pastor. Eu era obrigado a ir à igreja, meu pai era da Universal. Ali queriam incutir na minha mente que tudo o que me dava prazer era pecado: o desejo era filho do Diabo. Ficava ali ouvindo meu velho ler em voz ressonante e grave as páginas da Bíblia. Todos gritavam, alguns choravam e no fim agradeciam com uma chuva de dinheiro. “Todos deveriam contribuir para a Obra de Deus”. Dizia meu pai.
            
Ficava completamente apavorado quando o via removendo legiões de demônios dos corpos das pessoas. Achei bastante estranho descobrir que o mal só se manifestava naquelas pessoas depois que o meu pai lhes dava alguns reais, dias antes do espetáculo. Meu relacionamento com a família tornou-se insustentável quando, lá pelos meus quinze anos, revelei que havia me tornado ateu. Fui amaldiçoado pelo meu pai enquanto minha mãe segurava o rosto em prantos com as mãos calejadas pelo trabalho doméstico.
            
Fui embora de casa e passei a levar uma vida desgraçada: conseguia dinheiro da maneira como dava: roubando, trabalhando, vendendo drogas... até mesmo programas homossexuais fiz para poder me alimentar e ter onde viver. Certa feita, cansando da vida errante que estava levando, decidi concorrer num concurso público. Não abri um livro sequer. Havia pessoas que estavam estudando há anos. Eu passei na primeira tentativa chutando quase todas as respostas. Parecia que algo gostava de mim; o que era não me interessava desde que continuasse me ajudando.
            
Trabalhei, fiz cursos disso e daquilo, mas ainda continuei a ter uma vida de merda. Até que finalmente a conheci. Sai das trevas, agora tinha um motivo para continuar rastejando. Tinha um objetivo, algo que sempre faltou em minhas andanças. Todos os dias, das seis da tarde à meia-noite, eu e ela cumpríamos o nosso ritual: contávamos um ao outro as novidades do dia, em geral não muitas, pois ela era tão misantrópica quanto eu, e começávamos a transar, a inventar nossas histórias malucas.
            
Segurava o meu pau em frente ao monitor e me masturbava com firmeza enquanto lia as depravações que ela me enviava. Do outro lado ela enfiava um cilindro de guardar cacarecos, utensílio de uma das minhas viagens, que eu havia lhe mandado de presente. Cessávamos nosso prazer somente quando o pai dela exigia o dele. Isso me dava muita raiva, mas ela acabava me acalmando, dizendo que enquanto era molestada pensava em mim. Isso me dava uma sensação de conforto bastante estranha: sentia-me o melhor dos homens, apesar do sofrimento dela.
            
Depois que a cena horrível, que quase todos os dias se fazia presente naquela casa, terminava, ela me enviava alguns recados para mostrar que estava bem, que estava viva. Felizmente o pai de P... não era violento em seu ensejo macabro... como não ser violento num estupro? Era estranho, mas verdadeiro. Somente uma vez ele bateu nela: quando não conseguiu excitar-se tamanha a bebedeira que tinha entornado horas antes. Foi a única vez... pelo menos foi o que ela me disse.
            
Por muito tempo continuamos a manter os nossos hábitos até que uma noite ela veio com uma nova ideia: disse-me que não podia mais suportar estar longe de mim e que não agüentava mais as torturas sexuais do pai, ela disse que iria matá-lo. Fiquei paralisado de pavor. Depois do choque inicial, tentei de todas as maneiras fazê-la esquecer essa ideia, mas ela estava decidida. Havia elaborado todos os detalhes: o velho era um rufião, poucos sentiriam falta, pessoas desse tipo somem o tempo todo; ele seria envenenado e logo após teria o corpo dissolvido em ácido. Ela tinha todo o material necessário.
            
No fundo queria que ela cometesse o crime, mas temia que fosse pega. Minha amada me convenceu que tudo daria certo e pôs o plano em prática no dia seguinte. Quando sentei em frente ao computador para descobrir o desfecho do caso, não pude conter o sorriso: ela estava efusiva, feliz como eu nunca havia visto antes. Apesar do corpo que se ia pelo ralo no banheiro da casa dela fizemos tudo o que sempre fazíamos. Agora com mais vigor, alegria... sem medo.
            
Por meses conversamos na mais perfeita alegria. As lembranças do velho se iam apagando da mente dela e da minha. A polícia fez uma breve investigação e encerrou o caso: não valia o esforço para descobrir o destino dum velho moribundo. Tudo estava perfeito, já combinávamos a minha ida até lá no final do ano quando chegou à minha casa um pacote bastante estranho: era dela. Veio de surpresa, não havia nenhuma data comemorativa no calendário. Por que ela não tinha me avisado?
            
Abri o pacote junto ao computador, no meu quarto. Cai da cadeira literalmente quando vi que ali dentro estava uma mão ressequida: era de homem. Empurrando a coisa para longe sentei em frente ao PC e exigi explicações: ela me disse que não podia mais suportar ficar longe de mim, tinha que me tocar nem que fosse indiretamente, aquela mão que tantas vezes tinha passado seus dedos com volúpia na vagina dela, agora seria o meu foco para tê-la! Disse-me para me masturbar usando aquela coisa grotesca! Seria como se ela estivesse ali!
            
Tentei convencê-la que aquilo não era necessário, estaríamos juntos em breve. Ela, contudo, manteve-se irredutível: deixou claro que se eu não fizesse não ficaria mais comigo e ainda cometeria suicídio. Não tive dúvida de que falava a verdade: se teve coragem de matar o pai, apesar do merecimento do tarado, cortar-lhe a mão e me envia-la para tamanha depravação, certamente tiraria a própria vida. Eu não poderia suportar isso.
            
Peguei a coisa com a mente dominada pela repulsa. Usando-se dum programa de conversação via net, comuniquei-me com ela verbalmente. Sua voz era bela. Metodicamente ela foi me dizendo o que fazer enquanto se masturbava e gemia: feche os dedos ao redor do seu pênis, pense em mim e olhe para a tela do seu PC, vesti-me especialmente para essa noite. Ela ia dizendo coisas do tipo enquanto eu, com aquele pedaço de gente, tentava, em vão, ter uma ereção.
            
Demorou algum tempo até que eu conseguisse o que ela tanto buscava: o meu prazer. Veio em meu cérebro que aqueles cinco dedos haviam apertado a vagina, a bunda, os peitos da mulher que eu amava. As células dela ainda estavam ali de uma maneira ou de outra, elas ainda estavam ali. Fazer aquela mão me masturbar era como fazer as células DELA me masturbarem. Eu a estava possuindo pela primeira vez. Fechei os olhos e passei a apreciar o caso. Tive o orgasmo. Ejaculei fora da mão, com medo de engravidá-la. A fantasia tinha tomado minha mente completamente.
            
Após o ato. Livrei-me da mão jogando-a no lixo como se fosse um preservativo usado. P... me disse que eu a teria somente quando ELA quisesse. Eu consenti com o seu desejo. Nem um lapso de arrependimento veio à minha mente. Eu havia apreciado aquela experiência fúnebre, pois estava junto da minha amada. Bastasse que aquilo jamais fugisse dali. Seria tomado como louco, certamente. Perderia o meu emprego, seria um escândalo. Mas tinha valido a pena, como tinha. Sentia-me agora como o garotão que havia conseguido possuir a primeira fêmea: satisfeito e macho.
            
Passou-se duas semanas desde o nosso “primeiro contato”. Não mais aguentando ficar longe de mim, dizia ela, de não me ter nos braços, ela havia se decidido a me presentear com uma parte do próprio corpo! Disse-me que enviaria seu dedo médio para que eu o introduzisse no ânus! Argumentei que não fizesse isso, que era desnecessário, como ela digitaria com a mesma velocidade? Mesmo esse argumento tolo eu usei quando ainda pensava que a coisa não passava duma brincadeira. Infelizmente era sério, o dedo chegou.
            
Com ele ali entre os meus dedos, tentei convencê-la do contrário. Mas ela me ameaçou com a solidão. Pressionado, fiz: Não tive prazer, apesar de ter tido em outros momentos da vida falos de outros por ali passando. Não tive prazer até que ela começou a fazer, pelo webcam, o mesmo com o dedo indicador que ainda lhe restava. Gozamos juntos àquela depravação até o orgasmo. Aquele dedo eu guardei como se fosse sagrado, conservando-o em formol: como ela havia me instruído.
            
Quando pensava que mais nada poderia surgir da mente da minha amada, eis que ela me arrebenta com o derradeiro pedido: uma parte minha. Mais uma vez tentei persuadi-la do contrário, mas mais uma vez ela estava irredutível. Tinha que me ter, nem que fosse uma parte, não poderia aguentar. Dominado pela paixão disse que lhe enviaria um dedo. Ela não aceitou: queria minha mão esquerda. Empalideci. Não podia negar, mesmo com o medo me dominando. Segui com cautela as instruções dela: comprei o analgésico certo, as ferramentas corretas e elaborei uma mentira para os meus colegas de trabalho.
            
De posse do material, injetei a droga. Fiquei levemente tonto, mas não o suficiente para me impossibilitar de executar a tarefa que fazia por amor. Talhei minha mão. O sangue verteu em abundância, como esperado. Uma bolsa do meu próprio sangue já havia sido preparada para saciar a sede das minhas veias. Permaneci deitado por longo tempo depois da automutilação. Quando me recuperei, eu e ela saciamos nossos desejos: P... introduziu toda a minha mão em sua vagina, era gostoso ver aquilo, era como se eu estivesse lá, fazendo ela gemer de prazer. Ejaculei sem nem mesmo me masturbar, tamanho o prazer que aquela cena me dava. Não me arrependi.
            
Nossa depravação demoníaca seguiu por algum tempo. Ela com a mão, eu com o dedo. Falávamos todos os dias, transávamos todos os dias. A vida ia bastante bem por causa da morte: morte dos nossos restos, morte daquele porco que há muito estava misturado às fezes nos esgotos duma cidade que tinha a honra de ter em seus domínios a mais bela das mulheres.
            
Certo fim de tarde, enquanto ela introduzia minha mão em seu ânus tendo o mesmo virado para o webcam, a polícia arrombou a porta do AP dela. Ao verem a cena gritaram impropérios, chamaram-na de depravada. Ouvia tudo. Inclusive quando comentaram uns com os outros que sempre souberam que ela tinha matado o pai. Um deles surgiu com os ácidos usados para dissolver o cadáver. Tomaram os braços dela a força, mas ela lutou. Arrebatou a arma de um dos policiais e fez o cérebro de um deles beijar a parede do apartamento até que outro lhe tirasse o dom da vida com um disparo covarde, efetuado pelas costas.
            
Gritei como louco quando a vi cair inerte. Chorava, falava mal. Haveria vingança! Os idiotas, claro, não entendiam uma só palavra. Aquele povo nojento não se preocupava com nada! Nem com seus filhos! Por que a haviam matado? Encerraram com duas vidas. Eu não sabia mais o que fazer. Levantei da cadeira, ameaçava levar as mãos à cabeça, mas as recuava em seguida. Os olhos, tais como uma catarata, vertiam lágrimas como nunca. Nem mesmo Deus havia chorado tanto pelo filho assassinado. No impulso me joguei pela janela do terceiro andar. Meus cornos rebentaram-se contra o chão. Tudo escureceu.
            
Meses depois acordei numa cama de hospital. Minha primeira ação foi chorar... chorar mais uma vez. Uma mulher ao meu lado dizia que tudo ia melhorar. Tola! Nem ao menos sabia o motivo do meu sofrimento. O que me importava estar numa cama de hospital? O que me importava ser tão móvel quanto uma árvore? O que me importava defecar em mim mesmo? Quando tentei mexer os membros, chorei, mais uma vez e mais uma vez aquela mulher ignorante aos sentimentos tentou me acalmar. Tornei-me um poço de tristeza não pela minha paralisia e sim por estar fadado a jamais vingar minha amada.
            
Num jornal velho, deixado de lado por alguma alma sádica, li: “Fratricida depravada é presa em L... após assassinar policial”. Os inocentes sempre padecem vitimas dos verdadeiros demônios.

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