- A operação foi um sucesso, sen... quero dizer, senhorita.
Três vozes graves disfarçadas de agudas soltaram ao mesmo tempo a mesma interjeição de alegria. Uma delas, porém, era fraca e rouca, sua dona estava depositada sobre uma cama de hospital.
De cada lado do leito erguia-se uma figura exótica. A direita estava àquela conhecida como a Dona da Rua: possuía penetrantes olhos azuis; o cabelo chapeado, a cada movimento de cabeça, acariciava-lhe o corpo como se ali não houvesse atrito; o rosto era redondo, emanava um “quê” de rusticidade ao primeiro olhar, mas logo essa sensação se perdia no interior de praxes delicadas.
A outra era simplesmente chamada de Márcia. Os ombros eram largos, seus olhos não eram dignos de nota, nem seus cabelos tão comportados, contudo, era o travesti mais procurado na Rua José de Alencar (assim nomeada por conta dum famigerado antigo frequentador). De todas as garotas da rua, era a que tinha se metido nas piores confusões. A história mais grotesca era a do velho que queria ser sodomizado usando os vestidos da mulher. “Esse eu cobrei mais caro, sabe com é, eu gosto de dar, não de comer!” Sempre dizia ao terminar o relato.
Agora essas duas figuras estavam dando uma força para um amigo, ou melhor, uma amiga que resolvera definitivamente abandonar o terceiro sexo em favor da feminilidade.
- Nossa! Nossa! Nossa! Posso ver?
Gritava histericamente a Dona da Rua.
- Não! Ainda não dá, vai demorar um pouco.
Respondeu a acamada virando o rosto e movendo a mão no ar, como que envergonhada.
- Agora vai poder usar (retirou da bolsa um consolo colossal) o Velho Safado no lugar certo!
Disse por fim Márcia, definitivamente a mais, a mais... “liberal” das três. Segurava com cuidado o simular fálico carinhosamente batizado. A arma de trabalho, e também de companhia nas horas de solidão, estava com ela há mais de dez anos, tempo muito além do corriqueiro quando se trata desse tipo de brinquedo. Não a toa carregava tão carinhoso apelido.
As risadas corriam pelo quarto, quando...
- Vocês não tem respeito algum!?
Bradou o residente que havia trazido a notícia do sucesso da operação.
- Noooooossa!!!
Foi só o que pôde dizer a Dona da Rua diante de tanto rusticidade. As outras nem se mexeram. Com todos os olhos do leito em cima de si, o potencial médico deu continuidade à sua cólera.
- As senhoritas... que senhoritas que nada! Vocês, seus marmanjos, não têm vergonha de trazer uma... uma... uma coisa dessas (aponta para o desanimado Velho Safado seguro nas mãos de Márcia) pra dentro dum hospital!?
As três entreolharam-se. Não conseguiam entender o que o médico queria dizer com “vergonha”. Ora! Era só um brinquedo!
-Isso não é coisa pra se trazer pra dentro dum hospital! Vocês podem fazer suas safadezas em outro lugar! Esse não é o lugar pra esse tipo de coisa!
- Ah! Esse não é o lugar! Pois saiba bem o senhor que boa parte da minha clientela vem daqui! Ginecologistas, principalmente, meu bem! Fique sabendo! É tudo veado! Dizem pra mim que começam a estudar a coisa porque gostam de buceta, depois enjoam e vêm me pedir pra comer o rabo deles! Eu como! Como muito dos seus colegas! Seu mediCUzinho de merda!
Falou a Márcia sem nem mesmo pensar. A Dona da Rua logo pediu “um HIGH-FIVE”, prontamente atendido, às amigas. As risadas meio femininas, meio masculinas, tomaram o ambiente mais uma vez, o que serviu só para inflamar o nosso já inflamado médico judaico- cristão.
- Vocês são aberrações! Corja de putos! Vocês deveriam ser exterminados! Eu, um doutor, tendo que aguentar isso?! Como o Dr. Roger pôde me encarregar de acompanhar o pós-operatório de um bicho como você (aponta para a acamada)!? Vocês são a vergonha da sociedade!
- Vergonha é o senhor que se diz doutor sem ter doutorado. HIGH FIVE, amigas!
Falou por fim a Dona da Rua, arrancando das outras um par estrondoso de risadas. Nisso o médico responsável pela operação chega ao leito.
- Algum problema?
-Pergunte ao seu “assistente doutor”?
Responde com outra pergunta a recém operada. O médico fita o moralista.
- E então?
- Essas... esses... esses depravados estavam com um pênis na mão! Não estudei seis anos pra ficar aturando esse tipo de gente. Eles... eles simplesmente não prestam!
-Primeiro: o senhor deve respeitar os pacientes, médico-RESIDENTE Lucas. Segundo: não cabe ao senhor, nem a mim, julgar a moral alheia. Terceiro: considere-se suspenso de seus afazeres por tempo indeterminado. Retire-se, por favor.
Com o rosto disforme pela raiva, o repreendido sai rapidamente do leito. Na porta esbarra com uma enfermeira, fazendo-a derrubar as bolsas de soro que carregava; em suaraiva nem ao menos se importa em desculpar-se. Seu único objetivo é voltar para casa, tomar alguma coisa e esquecer o problema entre as pernas da namorada. Enquanto caminha a passos largos, o seu chefe incumbisse da tarefa de explicar o estranho temperamento do seu assistente:
- Ele vem de uma família tradicionalista de médicos, o pai foi um grande cirurgião, hoje está aposentado. Apesar da habilidade que possuía, tinha um grande defeito: odiava qualquer coisa que fosse contra os preceitos ortodoxo-religiosos que cultivava. Criou o filho nos mesmos moldes. Ele só participou do procedimento de troca de sexo porque estávamos sem pessoal.
- Esse garoto precisa é de uma distração.
Falou a Márcia enquanto balançava o Velho Safado no ar.
- Senhorita, por favor.
-Desculpe, desculpe, doutor, sabe como é, pra esse tipo de coisa eu cobro mais caro.
Todos riram da graça, até mesmo o doutor que se ia retirando com um pedido de desculpas, a única exceção foi a nova mulher. As palavras do residente não seriam esquecidas...
***
O cachorro foi chutado. A porta foi batida. A empregada foi xingada. Na raiva o homem faz tudo o que não deveria, maltrata quem não tem nada a ver com o caso. Por mais estranho que pareça, o homo sapiens às vezes se sente até melhor com isso. Mas no caso de Lucas, as coisas não foram bem assim.
Ao chegar em casa, seguiu o procedimento descrito acima, adicionando à lista o item “ligar o PC e falar com a namorada pelo MSN”. Onde esta ela? Não estava na lista de amigos. Entrou no Orkut, eis o que vê no campo “depoimentos”: "Lamento Lucas, não podemos mais continuar juntos. Acho que eu não sinto mais a mesma coisa que sentia, não é mais como antigamente, algo mudou. Desculpe-me. Não podemos mais continuar juntos."
Era como se a voz dela ecoasse na cabeça do fracassado médico residente. “Como assim? Não podemos mais ficar juntos?” Logo todas as teorias de traição que espreitavam em sua mente tomaram vida e começaram a dizer para o rapaz fazer o que não deveria ser feito. Todas as surras que havia levado do pai por ter sido um “mau menino”. Os discursos do pastor na igreja sobre a sujeira homossexual. O disparate daquele veado no hospital. A lição de moral do Dr. Roger. As promessas de amor eterno da namorada. Tudo se fundiu numa nuvem de frustração e ódio que... Bum! Gerou mais um cérebro morto nesse cemitério de neurônios chamado Terra.
Tomou em mãos uma tesoura que estava em cima da cama por alguma razão (talvez senso dramático). Tirou a calça e a cueca. Levou o instrumento ao pênis, deixou-o entre as lâminas. Por um instante paralisou, como se a mente tentasse restaurar as funções corriqueiras. Em vão. Com um grito fechou a mão que empunhava a arma. A ponta do falo foi ao chão, junto com uma chuva de sangue. No meio de tudo isso Lucas deixava vir ao mundo uma risada dilacerante. Do que ria? Como vou saber?
- Meu Deus! O que vocês fez, meu filho!?
Mesmo tendo dedicado a vida à arte médica, o aposentado cirurgião não deixou de agir como qualquer outra pessoa nessa situação agiria: fez absolutamente nada. O choque simplesmente o impediu. Ao ver o pai, Lucas não viu o pai, e sim sua namorada, àquela mesma que deveria servi-lhe como receptáculo de tensões. A parte que restava do pênis excitou- se, jatos de sangue foram cuspidos daquela mangueira talhada. Uma das golfadas atingiu, em cheio, o rosto do velho. Como um cão atrás duma cadela no cio, Lucas pulou no pai, rasgou-lhe as roupas, tirou-lhe a calça e introduziu, sem misericórdia, o pênis no rabo do homem que o gerou. O castigo durou pouco mais de um minuto, foi o suficiente para que o velho fosse, depois da partida subida do seu filho, ao seu escritório e tirasse duma gaveta uma arma empoeirada, comprada para “proteger” sua família. No mais absoluto silêncio carregou-a e puxou o gatilho. O cérebro do grande cirurgião, capaz de proezas médicas fabulosas, agora estava numa parede, como uma panqueca disforme, sem conseguir compreender onde havia errado.
Lucas, agora pelado, correu desesperadamente pelas ruas da cidade. Todos olhavam com espanto. O traço de sangue que seguia seus passos tornava a cena ainda mais grotesca. O médico residente atravessava rua após rua sem se preocupar com os carros que circulavam. Um deles quase pôs fim ao seu desespero. Uma velhinha era a motorista, mesmo com os reflexos torturados pela idade ela conseguiu evitar o pior, mas talvez tivesse causado o PIOR propositalmente se soubesse da atrocidade cometida pelo rapaz há pouco. Seja lá qual fosse a inclinação moral da idosa sobre o caso, ela nem ao menos teve tempo de ponderar o porque de um rapaz com o pênis cortado estar em cima do capô do seu carro. Logo após recuperar-se, o lunático arrancou a senhora do seu assento, cantou pneu e saiu freneticamente pelas ruas da cidade. “Vai tomar no cu.” Foi a única coisa que a velha pôde dizer.
As imagens, os sons, as decepções, tudo se modelava na mente de Lucas formando figuras grotescas que o cercavam querendo sua carne. Do caos reinante surgia uma figura que tornava tudo mais brando. Era a imagem da sua namorada, a única pessoa em quem podia confiar. A polícia vinha colada atrás do carro roubado por ele, nada disso importava. Como que por um milagre, o potencial médico vê num campo de beira de estrada a sua amada. Ela está completamente nua, suas belas formas excitam-no, estranhamente ela está pastando, como um gado.
O lunático para o veículo repentinamente. Corre até ela. Agarra-a. Estranhamente ela resiste. “Por que, querida?” Não consegue entender o que está acontecendo. Mesmo contra a vontade dela, Lucas introduz o falo em sua vagina. Ao longe uma dupla de policiais gordos se aproxima. Ambos com armas em punho.
- Largue a ovelha! Seu lunático!
Gritam ao longe. O rapaz apaixonado não entende do que estão falando. Olha para a amada, estranhamente ela balia.
- O que foi? Agora deu pra imitar ovelhas?
O garotão ri como nunca da pergunta que acabara de fazer. “Todos devem estar meio pirados hoje”. Pensa consigo. Receoso de ter o seu encontro com a namorada destruído pelos intrometidos homens da lei. Lucas toma sua namorada nos braços e sobe num poste.
No topo reinicia o que havia começado no campo. Com dificuldade põe a garota de quatro, agarra com firmeza sua cintura e inicia as estocadas. A menina balia a cada avanço. Achando o novo gemido da namorada bastante exótico, o rapaz decide imitá-la. Assim iniciasse um dueto de balidos que termina quando o seu cantor principal toca num fio desencapado do poste.
***
- Recuperado, me desculpa, quero dizer, recuperada da operação?
- Não se preocupe; totalmente.
A risada que segue à resposta há alguns meses causou bastante irritação num certo médio residente que hoje estava internado num certo hospital...
- O que tem pra mim hoje, mais um cagão? Hehehe!
-Não, não. Esse veio transferido. Sabe o caso do coitado que cortou parte do próprio pênis, comeu o rabo do pai e estuprou uma ovelha achando que era sua namorada?
- Sei sim
E como sabia...
- Pois é. É dele que você vai cuidar. O coitado perdeu os movimentos do corpo, não pode nem falar, mas está consciente, vai entender tudo o que você disser. Boa sorte.
- Pode deixar.
A nova mulher sabia muito bem quem era o garoto. O mesmo que a havia chamado de “bicho” meses atrás. O mesmo que havia dito tudo àquilo que uma família preconceituosa
e atrasada havia jogado em sua cara anos atrás. O mesmo que trouxe à tona as humilhações
da adolescência. Sabia bem o que fazer com o tipinho... Pegou o celular.
- Márcia?
- Fala, bicha.
- O Velho Safado tá com você?
-Sempre! Vai querer?
- Sim.
- Vai testar a buceta?
- Hoje não, é pra um amigo.
Muito bom!! Ótimo conto, bem construído e desenvolvido.
ResponderExcluirUsando fatos reais e fantasiando... a lá Bukowski...só que não na primeira pessoa e muito, mas muito mais exagerado!HeHe!
ResponderExcluirFico muito bom...teve que fazer vale a espera!