Já havia passado sete minutos e trinta segundos que esperava o
telefone tocar, chovia forte mas nem a capa e nem o guarda chuva impediam que
ela se molhasse. Até que, em exatos oito minutos, o som ecoou:
– Como você sabe, seu filho da puta! – a mão feminina, rasgada pelas
chagas da idade, quase que espremia o fone do orelhão de esquina riscado pelo
vandalismo, o sangue pulsava louco, os músculos franzinos querendo um pescoço,
não aquele aparelho público mal cuidado.
– Não interessa, – voz grave, artificial; quase um Darth Vader
telefônico – eu tenho as fotos, eu sei de tudo! Se a fes... Se a senhora não
deixar cem reais na lixeira da São Pedro até às 13h de hoje, eu publico tudo na
internet!
– Seu...! – Não sabia quem era, mas conhecia muito bem a si mesma. Ela
era Paula Pantera Guaianense, a lendária anciã da Escola Estadual Manuel
Bandeira, cujas aulas de Literatura jamais voltaram a encontrar o politicamente
correto depois do concurso público número 13.666/77.
“Literatura
boa é literatura chata!” Assim sempre iniciava suas aulas na dita escolinha
suburbana onde lecionava há “vinte, trinta, quarenta... Nem sei mais há quanto
tempo que eu leio as besteiras que vocês escrevem.” As pálpebras surpresas
quase que abriam a face dos alunos alvejados pela saliva ofídica da senhora
roliça, macia e trigueira que sempre largava, sobre o corpo expansivo, vestidos
pretos com listras brancas ora inclinados para cá – nos dias impares –, ora
inclinados para lá – nos dias pares. Debaixo daquela chuva, com a capa inútil,
os pingos iam para lá e as listras para cá; era um dia ímpar.
– Espera!
Cem!? – quase que encaixou uma palavra denotativa de exclusão, mas pensou
melhor, isso poderia atiçar a ganância do malandro, um tipinho não lá muito esperto...
– Isso
mesmo! Deixa o dinheiro na lixeira até às 12h!
– Não
era até às 13h?
– Hã?
– 13h
ou 12h?
– Ah!
12:30h! Deleto todas as suas fotinhos, sem problema, só quero o dinheiro.
– Espera,
como eu terei certe... – Ele desligou, como de praxe neste tipo de história.
Pensou naqueles alunos, e “naqueles” era coisa de cerca de dez mil, ou
algo por ai, logo a imagem das carteiras da frente, sempre ocupadas por
alunos-fantasma no primeiro dia de aula, formou-se no encéfalo bem talhado pelo
tempo; ante os covardes, nunca tardava a exclamar a única mentira que vinha
propagando desde o carnaval de 1971: “podem vir p’ra frente, não tenho doença
infectocontagiosa!” Em instantes os espectros eram expurgados pela turba
cadavérica que se ia erguendo do fundo da sala sobrecarregada. Aos que
resistiam, bradava com o vozeirão retumbante, estridente e vívido de generala
experiente: “então vocês eu ignoro!” E ignorava. Seria um dos ignorados?
Entrou no Fiat Tipo 1.6 cinza escuro matutando a lembrança com um
possível ex-aluno vingativo. A sensação fria do corpo encharcado e comprimido
contra o banco forrado de estopa barata penetrou o L2 e percorreu sem qualquer
respeito o resto da coluna, cutucou o cerebelo e foi se alojar nos confins do
cérebro réptil, em resposta, a parte mamífera puxou forte o ar estagnado do
carango parcelado em quarenta e seis vezes e trouxe a paz em doses homeopáticas
ao corpo prestes a explodir. Com os dentes queimando um no outro, resmungou,
movendo o quanto pôde os lábios endurecidos pelo ódio:
– Eu vou pegar esse filho...
Girou a chave uma... Duas... Três... Quatro... ... ... ... ... E mais
reticências seriam pouco para descrever o quanto a sexagenária senhora
esforçou-se para pôr o tal do veículo em movimento enquanto a paixão exigia
algum tributo, na última tentativa, ao contrário da ordem de todas as sinapses
racionais, a frustração crispada conseguiu, finalmente, o que procurava:
– Ahhhhhhhhhhhhh!!!
***
– Oi, Dona
Paula, tud... O que aconteceu?!
A resposta: o tronco inflando e desinflando; uma mulher avançando com
passos pujantes; a capa com o dobro do peso solta nos braços da empregada
perplexa; a porta do escritório fazendo a casa tremer. Procurou as provas e
trabalhos dos alunos babões dos últimos dez anos, fez a lista dos possíveis
delinquentes, de nada serviu, ela passava de quinhentos nomes, todos numerados
e organizados em ordem alfabética; como sempre costumava fazer, talvez pelo
motivo que a compelia a usar vestidos listrados.
Frente à papelada inútil, cerrou o punho, levou-o ao queixo e queimou
todo o fosfato que pôde, até que a empregada adentrou com o rebolar típico
daquelas que espanam:
– A
senhora me desculpa, mas eu tenho que limpar aqui antes de ir.
Visada ascendente em resposta, com o cenho franzido e repelente, em
seguida um mexer de cabeça quase imperceptível. A doméstica iniciou a limpeza,
a professora continuou a caçada. Por minutos o silêncio exigiu respeito, depois
de muito ponderar, a empregada abriu a boca, todo aquele marasmo a enfastiava,
era como se algo a obrigasse a falar, não sabendo por que o fazia, fez:
– Ai!
Que silêncio aqui, por que a senhora não coloca alguma música ou algo assim?
Isso parece um cemitério.
– Isso
– abriu os braços para a décima terceira empregada em dois anos, ao redor duas
paredes amplas entulhadas de livros variados – Isso fala, grita, não consegue ouvir?
– a outra recuou a cabeça e torceu levemente o pescoço, símile a um bicho
confuso – Daqui eu ouço o célebre conselho de Cubas: antes cair das nuvens do
que de um terceiro andar. Vejo Agamémnone tomando a doce filha de Briseis do
divo Aquiles de pés ágeis e Vasco rasgando mares dantes jamais navegados;
Enéias em Cartargo e Rita Baiana arrancando suspiros no cortiço. Quem sabe Cid
Espigão gritando louco da cela da ditadura ou o Boto Tocuxi com sua farinha
mágica em Manaus; Bukuwski vomitando palavras doces e amargas, e Poe com as
trevas da velha casa de Usher. Meus ouvidos quase rasgam com tantas vozes, elas
não lhe chegam à cabeça?
– Não
ouço nada.
– Você
não é a única.
– Hã...
Vou indo, Dona Paula. `Té amanhã.
– `Té.
– E voltou ao trabalho até despencar a cabeça, a boca e a saliva no material de
estudo.
Acordou-se sobressaltada, uma parte do pensamento estava ocupada com a
tarefa de outrora, contudo o resto continuava nas atividades corriqueiras, que
incluem levantar às 6h e chegar à escola antes das 7h. Banhou-se, trocou a
roupa ensopada, tomou café da manhã, preparou o material para as aulas do dia.
Além da pessoa, a única coisa em comum com as atividades era o ódio quase
materializado; a lembrança da obrigação do dia, aquela falha que lhe custou um
casaco encharcado, um banco de carro e tempo precioso, borbulhava na mente, o
calor da raiva ainda queimava pujante.
Sobre um banco semiúmido, agora cheirando acre, ela
dirigiu até a escola. Do outro lado da vida as ruas passavam com suas pessoas e
prédios; os olhos, a face e o resto dela, contudo, de nada se importavam com o
mundo, seguiam rijos, brilhantes e pensativos, buscando alguma resposta. Até
que, monologando consigo mesma, perguntou-se novamente o óbvio tão ressuscitado
desde o primeiro telefonema, ainda anterior à chuvasca:
–
Como ele sabe?
Semelhante à última das duas mil lâmpadas de Thomas
Edison, o espírito brilhou com a resposta:
–
Bosta! Não acredito que fiz isso!
Inclusão digital, a mais nova modernidade do
governo do estado, havia sido a responsável pela tragédia na qual Paula Pantera
Guaianense afundava-se.
A escola Manuel Bandeira tinha instalado há alguns
meses um sistema multimídia que “deveria ser usado pelos docentes em suas
atividades em aula porque pesquisas modernas comprovavam que o nível de
retenção nas disciplinas aumentava significativamente quando recursos visuais
concretos eram aplicados”, fora o que inicialmente a diretora colocou como
argumento, para em seguida dizer, em uma reunião em que nossa heroína quase
teve as forças furtadas por uma síncope, o seguinte:
–
E além disso, o governo fará uma vistoria anual para ter certeza que os
novos equipamentos serão usados, portanto, usem-nos – sorriu sem os dentes;
todos consentiram, exceto...
–
Olha, eu realmente acho interessante que o governo esteja alocando
dinheiro público nesse tipo de coisa – todos entreolharam-se, algo errado? –,
mas – Não – isso é besteira. P`ra que eu preciso de algo assim nas minhas aulas?
Não estou ensinando engenharia civil ou anatomia, o quadro muito bem serve para
a minha matéria e para todo o resto. Se um monte de luz projetada numa parede
servisse de algo, Galileu, Copérnico, Newton, Aristóteles, Arquimedes e tantos
outros nada teriam feito. Isso me parece uma desculpa muito mal fundamentada do
estado e dos professores para justificar os níveis medíocres da nossa educação,
a qual é medida com uma prova, o tal do ENEM, feita sob medida para apresentar
bons resultados, enquanto que nas provas reais, as internacionais aplicadas
pela Perason e outras instituições, nosso país só não perde para nações ou em
guerra civil ou subnutridas; com frequência os dois. Portanto, não vejo razão
alguma para perdermos tempo com esse tipo de coisa; se nossos índices são
ruins, façamos algo concreto para mudá-los.
–
Boa observação, professora, mas o fiscal chega em maio, então façam
todos a sua parte.
E a reunião acabou, e Paula Pantera teve de usar os
tais aparelhos modernos em pelo menos uma aula do bimestre, mas nada sabia
desse tipo de parafernália; tinha lá um notebook um tanto antigo, quase que
enferrujado, presente de uma das filhas; fuçou na coisa durante uma semana para
aprender a usá-la, apesar de ter feito alguns usos pretéritos, não tinha qualquer
sensibilidade para aquele tipo de aparelho. Conseguiu aprender as noções, mas
ainda lhe faltava a espontaneidade da dita geração Z, assim, no dia em que
pretendia ensinar os rudimentos da origem das línguas neolatinas, pediu a certo
aluno para configurar o aparato adequadamente.
Enquanto o sujeitinho ali fuçava, ela introduzia a
classe ao assunto do dia; distraída, não percebeu que no computador pairava
algumas fotos secretas com um namoradinho ainda mais secreto que ela conheceu numa
festa secretíssima há alguns anos; um mancebo de dezoito que inventou de
tornar-se fotografo após uma noite de conúbio efervescente.
O aluninho era um desses moleques traquinas; o
terror do bairro da Baixa, vivia com a manga da camisa ensopada de ranho; o
joelho sempre ralado; a bola de futebol embaixo do braço.
–
Vai tomar banho, Ozielzinho! – Berrava, do portão enferrujado da casa simples,
a mãe do capetinha. Lá de longe, do campo de várzea, sempre vinha uma resposta
espirituosa:
–
Banho deixa doente, velha louca!
–
Muleque!
E começava o corre-corre. Na frente, ia o garoto
com o rosto faceiro, orgulhoso da malcriação; atrás, ia a mãe desesperada,
louca de raiva, querendo por tudo educar o boca suja.
Ozielzinho, já famoso pelas traquinagens
corriqueiras, era também bastante conhecido por nada temer. “Sujeito home!”
Diziam os amiguinhos que nem fio de barba tinham. Seria ele o Vader dos cem
reais? Claro que sim, aquelas malditas fotos só estavam naquele computador, e a
único que teve acesso a ele foi... Mas seja quem fosse, ela precisava, antes de
tudo, das fotos, mas como ela teria certeza que não haveria outras cópias?
Jamais teria, então foi ao lugar combinado e lá deixou os cem reais. Pensou em
ficar de tocai, mas temeu existir algum cúmplice, decidiu, por fim, descobrir o
malando pelo uso da experiência.
Para cada tipo de aluno, ela tinha uma frase. Aos
espertinhos: “quais as principais classificações adotadas por Aristóteles na
Poética acerca do problema da definição de gêneros na antiga Grécia?” Aos não
tão entendidos, mas sagazes na arte do cochicho e correlatos: “explica o que
você acabou de ler.”
Via-lhes as almas, os
temores; os olhos eram um par de lentes diagnósticas fulminantes treinadas pelo
tempo, ou melhor, uma lente somente: Castelo Branco cuidou aos seus homens a
tarefa de furtar a cacetadas o globo vítreo direito daquela púbere estudante de
Letras numa época em que “pró-democratas comunistas” eram confundidos com
“subversivos terroristas”. Ela não era nenhum, nem outro; só havia saído para
comprar pão.
Mesmo talhada em
dois, suas habilidades crônicas funcionavam perfeitamente. Bastou um pé dentro
da sala de aula para elucidar a questão que lhe furtou um dia de vida. Dos
quarenta alunos da sala superlotada, somente um continuou a conversar, era ele,
Ozielzinho:
–
Então, agora eu tenho dinheiro – embaixo do braço brilhava, de quase
ofuscar a visada, uma bola Adidas oficial; na boca do menino balas e mais
balas, a saliva tingida de doces escorria pelos cantos das bochechas; era um
rei momo da terceira séria –, essa bola nova custou setenta, só de bala comprei
dez, o resto eu dei p`ro velho. Que foi?
A professora nunca
pisou tão firme em sala de aula, ali estava o malando. Imaginou, primeiro, o
esfolamento do diabinho, lentamente; depois se viu introduzindo tiras de bambu,
ao modo vietnamita, por debaixo daquelas unhas mal lavadas; por fim algo quente
e áspero ensartado em locais impróprios e outras coisas mais extremamente desagradáveis
para este tipo de história.
– Nossa! E o senhor
conseguir dinheiro em que lugar para tanto?
– Eu?
– É.
– Com meu pai.
– E deu o dinheiro
que conseguiu com o seu pai para o seu pai?
– É...
– Que menino bom –
sorriu como uma vovó, mas com os pensamentos de um demônio.
Seguiu com a aula,
como se nada tivesse acontecido. Lá no fundo da sala, o garotinho mascando bala
parecia, e de fato estava, mais preocupado com a bola nova, totalmente alheio
sobre o que fizera. O resto ignorante enquanto ao facho de fogo e de trevas que
explodia a todo o momento em que os olhos dela e dele cruzavam-se. Via aquela
boquinha mascando doce inocentemente, os olhos grandes e brilhantes olhando com
pureza, contudo sabia que naquela roupagem de anjo residia uma besta descontrolada
que devia ser domada... No momento oportuno.
–
Dispensados.
Um seminário sobre saúde. Foi isso que trouxe na
mente da professora Paula o plano de vingança ideal. Nem eu, o narrador
onisciente, e nem o leitor poderiam imaginar tamanha malvadeza, mas foi o que
fora feito na pequena cidade interiorana de um estado qualquer do Brasil. Assim
começou o discurso, a professora, enquanto a molecada batia bola no campo ao
lado, totalmente despreocupada com as consequências da última traquinagem do
capeta da região:
–
Futebol – futebol? Ninguém entedia o que Paula Pantera Guaianense queria
com esse tipo de assunto – , essa é das maiores causas de lesões entre os
jovens, não há esporte que ultrapasse o futebol em número de lesões. As
pesquisas apontam que um jogador profissional passará cerca de trinta por cento
da carreira recuperando-se de danos causados pelo esporte, nem mesmo um lutador
profissional de luta livre despende tanto tempo de vida em situação tão
lastimável, imaginem os senhores e as senhoras o que se passa com os nossos
filhos nesses campos amadores espalhados pela cidade. Que tipo de pais somos
nós? Como podemos permitir que nossas crianças se arrisquem tanto? Elas podem
tornar-se inválidas ante tantos riscos, uma lesão grave pode mandar para a
cadeira de rodas qualquer criança com a mesma facilidade que uma bala perdida.
Pensem, senhores e senhoras, devemos, agora, proibir o futebol, bani-lo da
nossa cidade para que tenhamos uma sociedade saudável. O que digo vai além da
questão de saúde, é uma questão moral com nós mesmos, devemos fazer isso por
nossas crianças, pela saúde delas...
E por aí seguiu durante uma hora e com gráficos,
inclusive, a vingadora. Após meses de deliberação, a escola aboliu o futebol,
não demorou para que a câmara dos vereadores fizesse o mesmo; o braço quebrado
do filho do presidente, durante uma pelada, certamente pesou na decisão votada
por unanimidade. A bola nova de Ozielzinho foi confiscada pela prefeitura
quando o moleque tentava burlar a lei com a rapaziada da Baixa pelas bandas da
Fábrica.
Instaurou-se a ditadura antifutibolística, toda a
molecada caiu no abismo da tristeza, sofreram até que...
–
Dona Paula.
–
Sim?
–
Fui eu.
–
O quê?
–
Que peguei as fotos.
–
E?
Nossa professora pensou no salário, nas condições,
na formação do professor brasileiro contemporâneo, e mesmo no banco encharcado
do Fiat Tipo 1.6. Por fim concluiu: o país do futebol seria punido, um mês mais
com o prato saboroso à mesa não colapsaria a nação, contudo refletiu: a criança
é tão ignorante quanto o ignorante que a cria. Deu uma bola nova ao moleque:
–
Pega e some, semana que vem tem prova.
E a vida voltou ao
normal.
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