UM BEIJO


Pode-se pensar que quando os jovens morrem, perde-se uma vida que não floriu, se assim é, então não se deve chorar pelos velhos, já que suas vidas não passam de fios prestes a rebentar, mas não queremos a morte de ninguém, pelo menos na frente da sociedade, precisamente dos amigos e da família, mesmo dos inimigos e desconhecidos, então do que serve o desespero? Digamos que seja ele o escape da mente à loucura vindoura da desesperança final; o choro, o sangue podre; os gritos, o socorre travestido de bicho.


Assim, num ponto distante, funcionavam as estranhas cerebrais de Clarisse antes da chama e da sombra derradeiras. Nos pés, saltos que a elevavam à altura padrão do conglomerado por onde deslizava seus desejos de sucesso social; nas unhas, o último esmalte de uma marca qualquer sempre usada por todas; no rosto, a maquilagem pesada, realçando a beleza muita e camuflando a feiura pouca; braços e pernas nuas, o resto pressionado por tecido vivo que subiria ao umbigo não fossem as mãos sempre atentas.
           
No caminho, a noite cuspia seus tipos excêntricos e comuns, sociais ou nem tanto, ébrios e sãos; todos ostentando o semblante dos seguros, mas denunciando as frustrações com viradas constantes de cabeça, como se procurassem noutras paragens a pessoa que nunca encontram, jamais satisfeitas com o que têm. No grupo de Clarisse, o mesmo ocorria, ali todos conversavam, os homens mais com os homens, as mulheres mais com as mulheres. O jogo de ontem, o vestido novo e a virada do crânio ou o deslizar dos olhos rumo às têmporas, tudo quebrando a harmonia pouca.
           
Alguém novo se achega, o grupo é desfalcado, outro ocupa o lugar, traz uma bebida, todos estão na fila da boate. Eles não se importam com quem passa ou quem lhes aborda o grupo; querem o culto, eles fogem dum templo para cair noutro, ali encontram sua segurança, num antro abafado e escuro, donde emana concupiscência represada pela fila prévia ao bolor de diversão que atrai jovens com o cheiro milenar do escroto de Dionísio. Sua diversão são as grades da escuridão fulminadas por feixes luminosos e epiléticos.
           
Na outra vida, distantes da madrugada, ainda tomados pela luz, eles instigam a beleza, a ciência, a compreensão, a amizade, vestem-se com os mais belos trajes, com as mais perfeitas frases, banham-se nos mananciais da arte sublime dos homens mortais e dos deuses imortais, muitas vezes nem sabem o que fazem, mas lá estão, com novas fotos e fantasias, esperando que a pessoa correta contemple, buscando com a criação doutros o reconhecimento fugaz.
           
Conversando, rindo, brincando de amar, extorquindo velhos ansiosos pelo diploma procrastinado pelas noites de sexta, seguem a treva nefanda, jogando doce dum lado e amargo doutro. Os garotos com suas conquistas mal esclarecidas, as garotas com suas negativas dissimuladas, e Clarisse ali no meio, de pele clara e cabelos alisados a fogo, altiva sobre a plataforma e cercada por séquito fiel ansioso por um naco da sua popularidade.
           
Cada qual contribuindo com suas habilidades. Uma com os traços, outro com o dinheiro, aquele com diversão. Há os tolerados e os tolerantes, as meninas que se fazem crescidas, os crescidos que se fazem meninos, especialistas e amadores. No fim, todos descem as mesmas escadas e se deparam no mesmo lugar: a boate.

Sempre guarnecida por gorilas apáticos e mal pagos, o novo reduto dos depravados de outrora tem como sacerdote um garotão que, se nunca fez nada pelo próprio pão, no mínimo esforçou-se para consumir com a ânsia das solitárias o que sobrava do pão das tripas alheias.

O local, onde simples saltos tornar-se-iam floretes de morte, era a casa típica desse tipo de criatura. As leis não mais valiam ali: se entrasse, teria que permanecer pelo menos uma hora; as roupas, selecionadas, evitam-se assim os tipos da periferia, com as garotas, entretanto, tudo era válido porque vestidos curtos atraem meninões dispostos a pagar bebidas por um pouco de saliva, e quem sabe coisas mais do outro sexo; a fila, mais que necessária, os jovens são atraídos por elas como moscas por um cadáver, pensam que a diversão varia em proporção com o número de púberes por metro quadrado.

Clarisse não pensou em nada disso enquanto seguia com seus ensaios no colóquio vazio que travou com aqueles que lhes seguiam na fila construída pela boate. Antes de entrar, foi revistada por mãos desinteressadas, se quisesse ali penetraria com um fuzil entre as pernas, desceu escadas mal iluminadas e teria ido ao chão não fosse o amigo dando-lhe apoio, esgueirou-se de mãos dadas com outra até um pilar, enfrentaram cem pessoas no trajeto, reclamaram do aperto e do calor, mas por que não saíram? Estar ali, perfurar a multidão com passos fortes, é o ritual da boate: reclamar para regozijar.

Alguns minutos foram o suficiente para que o primeiro pretendente aparecesse. O som alto do DJ atacando inclemente cada palavra proferida, ambos dançam, o corpo deve reclamar a falha da voz, o animalesco impera, não a sapiência, domina-se com o corpo e com ele repele-se. Clarisse não quer aquele homem, com a mão direita erguida e espalmada, repele-o enquanto se vira em direção à amiga, abre um sorriso amplo, de mulher vencedora, de fêmea que sabe escolher e descartar.

O copo de cerveja do quinto garotão firme entre os dedos delgados, ele balançando-se com a pélvis levemente inclinada na direção do alvo – Clarisse ignorante a esse aspecto, coisa que nunca percebera, assim como muitas outras –, um descuidado passa apressado e golpeia com o cotovelo o copo barato, Clarisse é lavada, xinga, o maior interessado prontificasse em limpá-la, como se um incidente o transmutasse num cavalheiro brilhante.

Outros passam, galopando como gado em fuga. Clarisse é arremessada contra um pilar, procura, atordoada, pelo herói da cerveja, não o encontra, grita pela amiga, o som se perde em meio ao alarido de cascos e terror. Horrísona massa a espreme contra o pilar, do teto nuvens negras e flamejantes pendem em busca da carne delicada daqueles que da aparência vivem. As lágrimas, que o incêndio apagariam se bem direcionadas, escorrem pelas faces tomadas de cinzas, os fortes atropelam os fracos, alguns daqueles levam estes e pisoteiam os que sobram.

Saltos penetram a carne, a morte é, primeiro, levada pelos humanos tornados bichos, pelos que fogem do fogo como gazelas na floresta ardente. O pânico penetra o cérebro, o sangue, os sapatos e as meias, olhos são vazados, rostos mutilados, afogam-se na torrente de desespero e nos prantos sanguíneos daquelas e daqueles que buscam a luz da lua, tênue mas salvadora. Aos abandonados resta o ar denso e atormentador para lhes fulminar a garganta e os pulmões, com a mão vã segurando o pescoço, eles sucumbem uns sobre os outros enquanto são atropelados pelos mais resistentes.

Clarisse segue esmagada no antro do corpo disforme, banhada pelos próprios olhos e pelo o de outros. O rosto branco tornado negro, a respiração pesada, o corpo sucumbindo até os braços dum desconhecido, as palavras reconfortantes penetrando-a, mas inertes como os asfixiados, queimados e pisoteados. Corpo e mente buscando ar sob a madrugada inclemente. Os olhos vermelhos fecham-se, como se procurando esquecer aqueles que foram perfurados por saltos homicidas.



Clarisse deixa-se entregar, não sabe que se tornará uma heroína somente por ter feito o necessário para sobreviver, somente por ter desejado mais uma noite vulgar de bebedeira e falsas amizades que resultara num filete de carne humana preso no salto esquerdo do pé tingido de rubro. Muitos jovens se foram junto com ela, a maioria levada pelo pânico da sobrevivência e portanto por si mesmos; lá estavam para saciar os desejos primais, por eles foram mortos, não há surpresa. A carne daqueles pés poderia construir um homem, mas aos seus donos atribuiu-se o título de heróis, apesar de terem sido bichos que verteram sangue pelos olhos.

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