O primeiro tapa saltou-se com a mão direita, de
luvas, aberto e fechado, n’outra mão eu segurava com firmeza uma garrafa de
vinho, não queria largar aquilo, realmente não queria, eu sabia que no momento
em que ela saísse do anelo dos meus dedos, aquela esquerda ciumenta iria pular
enraivecida, em frenesi completo, no rosto macio dela, dali para frente seria
somente selvageria, aquela coisa qualquer que mantemos presa por uma corrente
de racionalidade, que alimentamos de frustração, problemas familiares, passado
oculto, restos de fast food e
ex-namoradas.
Eu sabia que era assim, havia
passado por isso com um trio escurecido numa noite caucasiana. Daquela vez não
era vinho, e sim conhaque, meia garrafa de Dreyer, na época em que essa bebida podia
ser comprada. Os mosqueteiros da coabe cercaram-me, exigiram meu sangue, não
quis dá-lo, não larguei aquela maldita garrafa, quase que senti minha mão sendo
partido pelo vidro apertado com animosidade, eu sabia que não podia largar a
garrafa, ou tudo iria virar selvageria, mais alimento pra’quele ser cercado de
comida.
A mão foi e voltou, a fera rugiu,
queria derrubar a garrafa, mas ela permaneceu segura, a corrente sólida
enquanto o ser arranhava-a febrilmente, buscando a liberdade pra’quela coisa gosmenta,
fedorenta e vagamente humanóide, que começou a deixar algo doce e parecido com
nuvens e lembranças escapar pela boca, pelos olhos, pelo nariz, pelos ouvidos e
pelas descargas ignóbeis do corpo. Foram dois golpes: um de ida, outro de
volta, com o dorso. Elas permaneceram em comunhão.
Então eu e meus irmãos estávamos
com sono; o velho bebendo muita cerveja, pouco vinho, ele tinha mal-gosto, e os
pequenos ali dormindo num banco de pau, exigindo da juvenil parideira um
descanso mais digno. Eis que o homem cede, despede-se dos grandes amigos, ele
monta no monza 96 com a estirpe desgraçada logo atrás, acelera, baba, muge,
explode o olho da consorte, um porta-luvas brega e a psique de uma geração
inteira. O mato é o refúgio, a família foge e lá alimenta alguma coisa
estranha, doentia e juvenil.
A garrafa abraçou o chão, o
sangue envolveu o local da queda, respingou nos amantes, alguma parte qualquer
do cérebro acionou o alerta, outra parte gostou do acontecimento, uma terceira
absteve-se, o resto do mundo pareceu não perceber, quando todos notaram algo, a
esquerda havia dado o salvo postergado com razão barata de interações chulas e
madrugadas soluçantes. A outra, que com tanto esforço corroeu com uma língua
lasciva aquela corrente fétida, abraçou também o chão, como a vinho por ela
assassinado.
Então nos escondemos embaixo da
cama, afinal, éramos crianças, sabíamos que algo estava errado, mas nosso irmão
maior não estava ali para nos proteger e o resto, bem, o resto não se
importava, afinal, que se podia fazer? Foi naquela noite que percebi que meu
pai sentia um prazer estranho, ou talvez só pouco conhecido, ou quem sabe apreciado
por muitos, não sei; foi ali que percebi que a sensação daquela mão formigando,
depois de subjugar um ser três vezes mais fraco, fazia outra coisa excitar-se:
o pênis dele estava em riste, pude perceber pelo movimento estranho da calça.
O choro tornou-se baixo, um
balbucio fugia da mandíbula com dois dentes extraídos a velha moda, meus olhos devorando a cena, acho que vi aquela coisa
gosmenta e gotejante prostrada sobre ela, depois percebi que eram lágrimas, mas
minhas, eu estava ali ajoelhado, vendo um pedaço de mulher rastejar no chão
frio, a coisa quente eram minhas lágrimas evaporando na pele dela, esquentada
pelo golpe. O vinho tocava o sangue, formou-se um líquido curioso, que me pareceu
bastante atraente e adequado para degustação.
Minha mãe masturbava-se no sofá
da sala, eu e meu irmão ficávamos observando aquilo, procurando uma fresta para
descobrir de onde realmente tínhamos vindo, ela brigava conosco, mais com tão
pouca energia que eu, certas vezes, imaginava se aquilo não era um convite sexual
pouco inteligente e moral. Com quinze anos fiz o experimento: copulei com a
calcinha dela. Nunca mais pude ver uma, até hoje passo mal com uma mulher de lingerie.
Estava de saia curta, vi a
calcinha. O prazer estranho que fremia o espírito saltou do meu corpo, cai de
“coxis”, levantei-me, a coisa continuava gotejando, e ela ali, no chão, vendo
os dois dentes um pouco a frente, ambos formando um sorriso sobrenatural, como
que dizendo:
– Ei! Aqui fora é legal – foi o
que eu ouvi.
– Volte... Volte... – foi o que
ela ouviu, acho que a verdade foi nada disso.
Foi uns dez anos antes que
discuti com um sujeito sobre coisas quaisquer da vida. Ele tinha um método,
algo para selecionar os animais que queria na própria arca, mas menos
inteligente que Noé, era mais ou menos parecido com isso: o direito absoluto de
comentar com a congregação dos escolhidos os assuntos vergonhosos sobre outros
membros do grupo, partindo da suposição de que todos diriam tudo para ele. Um
dia eu mostrei a falsidade disso, simples: fiz algo e não contei. O choque foi
muito forte, as bestas de ambos banquetearam-se fartamente naquele dia.
E essas coisas fulminavam minha
massa cinzenta e outras mais, e eu me perguntava:
– Cadê meu machado?
– O quê?
– Meu machado.
– !!!
– Não, não! Só lembrei que tenho
que afiá-lo.
Uma conversa nossa nos tempos da
fulgurante alegria nos campos resplandecentes do Elísio terreno, precisamente
em Floripa – como eles chamam por lá –, cortou meu pescoço; na praia dos
Ingleses, numas rochas afastadas, com um pano manchado de sêmen e corrimentos
vaginais pós-sexo, conversávamos:
– Um triângulo pode ter 90°
graus?
– Claro que não, seu burro!
Parece que nunca estudou isso.
– Então quanto tem?
– 180°, burro.
– Hum. E como você sabe?
– O professor disse.
– E como ele sabe?
– Sei lá! Decerto outro professor
disse pra ele.
– E como...
– ‘Tá bom, não quero saber disso!
E me agarrou, então aspergimos
mais um pouco de líquido naquela toalha do Grêmio, e o triângulo de 90°
continuou ali, bem preso no córtex frontal, esperando solução, um dia
encontrei-a: um amigo afastado que decidiu trepar com uma guria que tinha
sentido comigo as dores da primeira penetração – gemeu de tal maneira que me
surpreendi com a naturalidade, quando perguntei, disse-me que era só dor...
Gostei mesmo assim.
A questão é que eu vi o triângulo
ali, 90° graus perfeitos, até ouvi os gemidos abafados daquela garota com dois
dentes faltantes correndo do quartinho dele rumo aos meus ouvidos furtivos e
estrategicamente posicionados atrás da janela de madeira daquela coisa
carcomida.
– Ah! Meu machado! Já está
afiado!
Eu queria ter o machado naquele
dia, é... Ele estava afiado e o triângulo realmente tinha 180° graus completos:
um vértice era a junção da parte inferior do tronco de ambos, os dois
restantes, resolvi fazer com a parte superior, os braços ajudaram no ângulo e o
machado no corte. Depois disso bebi o vinho sobrevivente e fundido com salmora
humana. Degustei com prazer a mistura.
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